Episódio XIII de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra

Sergio Agra

DE TREM E CLANDESTINOS

Episódio XIII de As Crônicas de Aleph

“Quero, para aproveitar a minha viagem sentir o maior número de coisas no mais pequeno espaço de tempopossível.  Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo

de todas as formas, tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas

e não olhar para trás — parece-me o único destino digno dum poeta.”
Álvaro de Campos

 A viagem por trem — o Minuano ou o Pampeiro —, de Porto Alegre com destino a Santana do Livramento partia às 7 horas da noite com chegada prevista para as primeiras horas do amanhecer do dia seguinte. Eram trens-leito dotados de restaurante e bar. O Pampeiro, diferentemente do Minuano, possuía cabines-leito, o que guardava maior privacidade aos seus ocupantes. Fora numa destas que ‘Anahi”/Maria do Carmo e eu nos acomodamos para uma longa noite que parecia não ter fim.

Finalmente pudemos trocar um ‘abraço infinito’ que, apesar de silencioso, carregava em si certezas de que chegaríamos ilesos ao nosso destino. Não obstante, demostrei temor pelo futuro de Maria do Carmo, — “Como sairás incólume disso tudo?”. Ela foi resoluta, — “Não ouviste as instruções que o Agnostopoulos nos passou? Pois eu conto contigo para isso!”. Não logrei disfarçar a insegurança, — “A mim os arapongas desconhecem, ainda que eu já esteja metido nessa loucura fazer o quê? , mas e tu?”. Maria do Carmo pacientemente expôs-me uma vez mais o plano e o quê exatamente deveria ser feito. Na derradeira tentativa de demovê-la desse desatino a preveni, — “É arriscado demais!”. Ela foi taxativa, — “Sei que é, mas tudo vai dar certo!”. Eu permanecia aturdido, mas agora era tarde para desistir. Ademais, tratava-se de uma questão de honra pôr a salvo a vida daquela audaciosa mulher.

Maria do Carmo finalmente se acomodou no aconchegante leito. Uma réstia do débil sol primaveril penetrava por entre as frestas do cortinado iluminando parte de seu rosto. Ela estava  extenuada. Sua fisionomia estampava por vez primeira o temor ante as incertezas do seu futuro. Percebi os conflitos que traspassavam a alma de minha amiga.  Mirando-a com ternura fui hábil ao evocar, — “Tenho uma dúvida que até hoje me persegue: a história de Fedra…”. Premeditada ou não, minha estratégia fora feliz. Maria do Carmo esboçou o mesmo sorriso moleque daquela tarde no pátio da escola, durante o recreio, — “Não a esqueceste, tampouco acreditaste na história?”. Fui incisivo, — “Houve, sim, muitos momentos em que eu queria acreditar. E quanto mais eu pensava realmente te conhecer menos sabia quem era a verdadeira Maria do Carmo”. Sorrindo ela rebateu, — “Ou quem era Fedra?…”. A jovem brincava com minha curiosidade, — “Me tens como uma esfinge?”. Assenti, — “Era decifrar-te ou me devoravas...”. Maria do Carmo provocou, — “E?…”. — “Nem uma coisa, nem outra”. Ela duvidou, — “Medo?”. Esta provocação  causou-me fingida indignação, — “Por que razão eu teria medo?”. Maria do Carmo tornou a me desafiar, — “De te confrontar com a verdade”. Reagi ao golpe, — “Sempre lidei bem com minhas verdades”. A fugitiva passageira discordou, — “Não é verdade! Sabes muito bem disso!”. — “E para ti? — questionei por minha vez, — Qual é realmente a verdade?”. Maria do Carmo mirava contemplativa a morrente luminosidade que teimava penetrar pelas frestas das cortinas, — “Aleph, quanto tempo ainda nos resta viver eu não sei… Tenho dúvidas de que esta viagem chegue ao final planejado — uma sombria interrogação sobreveio no olhar da ativista — O que virá? Camaradas estarão mesmo esperando por mim em Rivera? Ganharei passaporte com outro nome que não o meu? — Ela me encarou, — Irei para o Chile, mas até chegarmos à fronteira estaremos correndo o risco de sermos presos — Maria do Carmo fixou o olhar em ponto indeterminado — “Poderemos, quem sabe, viver até os setenta, oitenta anos e adormecer suavemente numa cadeira-de-balanço, mas nada vai superar o que já vivemos, pois apesar de toda a dor e sofrimento foram os nossos anos dourados e estes ficarão gravados a ferro e fogo em nossas memórias. Tudo, Aleph, tudo!”.

O silêncio somente era rompido pelo clamor das bielas e dos carris do trem sobre os dormentes. Então amparei Maria do Carmo em meus braços, afagando-a com extrema delicadeza. Beijei com ternura os cabelos, as têmporas, os olhos e as faces de minha amiga. Isso eu fazia com certo desajeitamento. Nossos lábios finalmente se encontraram na infinitude do beijo a tanto tempo reprimido. A pressão macia do frágil corpo de Maria do Carmo e o regaço movediço de fêmea carente buscando meu sexo fora a confirmação de que ela realmente desejava, ainda que pudesse ser este o último ato de sua vida: ser amada por este leal e antigo amigo. Maria do Carmo desabotoou a jaqueta e em seguida desceu o zíper da calça jeans. Ambos desconhecíamos  se o repique que escutávamos eram os do sino de alguma pequena estação ou simplesmente  fruto de nossa fantasia. Nada mais importava. Os sentimentos encarcerados durante aqueles anos todos jorraram feito gotículas de orvalho sobre os lençóis do estreito ninho e iluminaram os céus da longa noite que se antecipava ao confronto com a clandestinidade e o banimento daquele então silencioso e entristecido Brasil. Inebriada de felicidade Maria do Carmo por fim adormeceu nos meus braços. Cuidando para não despertá-la pousei sua cabeça sobre o travesseiro e cobriu seu pequeno corpo com a manta. Não pude evitar o sorriso ao lembrar a fantástica história de “Fedra” narrada pela doce amiga que agora seguia para um destino incerto.

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