Episódio XIV de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra

Sergio Agra

NO CAMINHO DO EXÍLIO

Episódio XIV de As Crônicas de Aleph

“Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”.

Fernando Pessoa

Imerso nessas lembranças não percebi que o trem havia estacionado na pequena estação com ramal. Uma composição trafegando em sentido contrário estava prestes a chegar, deixando assim o trajeto livre para o Pampeiro. Com a súbita parada do comboio Maria do Carmo emergiu do sono profundo em que até então estivera mergulhada. Chamando-me perguntou, — “Tens fome?”. — “Apenas sede!”. Maria do Carmo externou receios, — “Não devemos sair. Corremos o risco de sermos vistos”. Eu sabia que a condição de fugitiva era somente del, por isso tratei de tranquiliza-la, — “Vou ver se consigo algo para bebermos. Não daqui!”. Pouco depois eu retornava para a companhia da parceira trazendo uma pequena garrafa com água mineral. Maria do Carmo aconchegou-se em meus braços uma vez mais, — “Faz frio, ainda — estendendo-me a manta fez o convite — Vem, te aquece. E trata de comer um pedaço deste sanduíche que Suzana teve a lembrança de fazer”. Eu admirava cada vez mais aquela mulher. Agradeci o alimento ofertado, mas insisti para que apenas ela o comesse. Afinal, era aquele pequeno sanduíche o único alimento que Maria do Carmo trouxera. Por outro lado, ignorávamos o que ainda viria pela frente. Resoluta, ela me entregou uma das metades daquele maná.. Como se estivesse lendo um pergaminho invisível Maria do Carmo recitou, — “Os budistas repartem o manto que lhes agasalha e a comida de sua tigela com os que têm frio e fome. Isso para eles simboliza a verdadeira comunhão do corpo e da alma”.

Finalmente o trem alcançou a gare da estação de Santana do Livramento. Dali até a Fronteira da Paz e a Calle Sarandi em Rivera era uma caminhada de poucos minutos.

O restaurante El Padriño não se mostrou difícil de ser encontrado. No recinto ainda vazio via-se somente a figura de um homem corpulento, folheando A Plateia, o semanário da cidade brasileira. Ao nos avistar ele não demonstrara surpresa. Jose Parodi apressou-se em informar que o tempo urgia. Não havia espaço para longas despedidas. Na calçada em frente ao restaurante Maria do Carmo pediu-me que intercedesse por ela junto à mãe, — “Fui muito injusta com ela. Apressei-me em serená-la, — “Tua mãe há de entender. O mesmo não posso dizer quanto a teu pai”. A futura exilada lembrou com tristeza o dia anterior quando Dona Alice aos risos dissera-lhe, — “Merda! Não é assim que vocês atores dizem para o sucesso da estreia?”. O semblante de Maria do Carmo demonstrava amargura, — “Não dei ao menos um beijo de despedida…”. Garanti que assim que eu chegasse a Porto Alegre ligaria para Dona Alice, — “Direi a ela que tudo correu bem e que seguiste na companhia de amigos para o Chile”.

Maria do Carmo passou naquele instante a ter a noção da real extensão dos fatos, — “Não sei se tão cedo poderei me comunicar com ela sem correr riscos…”. Encorajei-a, — “Dona Alice há de sentir orgulho da filha que tem!”. Permanecemos calados por um ou dois minutos, até que rompi o silêncio, — “Vou sentir muito a tua falta”. Não sem algum embaraço Maria do Carmo logrou confessar, — “Também vou sentir… e isso o tempo não irá desfazer… Dúvidas voltaram a dominar meus pensamentos, — “Não tenho tanta certeza…”.  Agora era ela quem se mostrava mais forte, 

— “Mas é assim que eu sinto como será comigo…”. Após o delicado beijo e sem me olhar diretamente nos olhos ela revelou os sentimentos que lhe comprimiam o peito, — “Jamais vou esquecer o quão importante és para mim…”. E ‘Anahi’ iniciou, guiada por Jose Parodi, a longa e amarga caminhada pela Calle Sarandi que a levaria ao exílio, sem que sequer algum de nós imaginasse que carregava dentro de si o fruto do mais puro amor…

Enquanto isso, a Nação alienada entoava:

Noventa milhões emação,

Pra frente, Brasil,

Do neu coração…

…Salve a Seleção…”

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