Episódio XVI de Navegar é Preciso… – Sergio Agra

Sergio Agra

TENHO EM MIM TODOS OS SONHOS DO MUNDO

 Episódio XVI de Navegar é Preciso…

 Qualquer caminho que me leve à liberdade é o meu caminho.

Fernando Pessoa

 — “Então, irás cursar Direito?” — meu pai perguntou. Minha resposta fora taxativa, — “Jamais estaria em mim entregar o destino de meus clientes às cabeças dos magistrados, ditadores vestindo becas, que redigem peças de acusação ou prolatam sentenças de conformidade para onde sopram os ventos do humor da hora ou, o pior…”. — “Se os tem sob esse conceito — era meu pai interrompendo meu pensamento — cala-te já, cuidado com o que dizes!”. Julgando-me vitorioso no debate arrematei, — “Veja bem, meu pai, você mesmo confirma minha convicção — e ironizei de vez — Como eu poderia respeitá-los se entre Emendatio Libelli e Mutatio Libelli, metade dos “urubus togados” se imagina ‘deus”, a outra metade tem a certeza de que O é?!”. Desta vez meu pai se distensionou num riso franco, — “Está em ti, está no teu “sangue”, já és um mestre do ‘latino juridiquês’!”.

Eu terminaria por acatara o conselho paterno em prosseguir os estudos com a condição, porém, de que minha formação se realizasse na área de Letras e Literatura Clássica e Contemporânea e, mais, no Exterior, na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.

No entanto, eu teria, antes de tudo, submeter-me e ser aprovado nas provas do vestibular ao Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não apenas isso; deveria ali cursar o primeiro ano e, aí sim, candidatar-me à inscrição, deferimento da matricula e transferência para a Sorbonne Nouvelle.

Para surpresa de meus pais eu obteria, dois anos mais tarde, a admissão.

A Universidade está localizada no coração do Quartier Latin e oferece cursos nas áreas de Artes (cinema, teatro, audiovisual), Ciências Humanas, Letras, Línguas e Civilizações Estrangeiras, e Ciências Humanas e Sociais, em programas de licenciatura, mestrado e doutorado. Ela acolhe cerca de 3000 estudantes estrangeiros.

A Faculdade de Letras oferece hoje dezessete cursos de licenciatura, assim como vários cursos de pós-graduação, incluindo vinte e cinco de mestrado e vinte e dois de doutoramento. Disponibilizava àquela época seis cursos de especialização.

Por ela passavam estudantes de todas as lonjuras, na sua maioria mulheres de exótica beleza como as gregas, as tailandesas, as colombianas e mexicanas —, vestindo decotadas blusas de tecido de crepe ou diáfanas camisas de seda em que irrompiam belíssimos e protuberantes seios. Afinal, Paris est une ville des passagers d’amour d’eté et d’éternelles orgies d’automne.

Foram, no entanto, os olhos verdes, oblíquos e dissimulados de Maria Pia F. que me enfeitiçaram. Jamais esqueci o que ela, em nosso primeiro e furtivo encontro, me perguntara, “Por que eu, se não faço bem às pessoas?”.

Em toda sua vida Maria Pia nunca fora tão verdadeira ao responder ela mesma à própria indagação. Não obstante, nossos gênios diametralmente opostos, nos jogamos com todo ardor e paixão naquela que jamais seria uma relação emocionalmente equilibrada.

Por ocasião das festas do Natal e do Ano Novo Maria Pia convidou-me para viajarmos a Região do Vêneto. Descobri em Verona, sua cidade natal, a Piazza dei Signori, a lendária Casa de Julieta, com o balcão de onde ela ouvira as juras de amor eterno de Romeu, na Via Cappelo, próxima ao palacete da família de Maria Pia. Em Veneza cruzamos a emblemática Ponte dos Suspiros. Il Duomo de Florença e o de Siena causaram-me indizíveis emoções de quem se encontra como que transportado para fora de si e do mundo sensível, por efeito de exaltação mística. Il Duomo de Siena, construído no ponto mais alto da cidade é, sem dúvida, uma das catedrais góticas mais incríveis da Itália. Nela trabalharam alguns dos maiores artistas do país, como Donatello, Pinturicchio, Lorenzo Ghiberti, Nicola Pisano e Bernini. As históricas cidades de Pádua, San Donà di Piave e Belluno provocaram-me, cada qual, sentimentos distintos.

Fora, porém, a magia e o encantamento de Cortina D’Ampezzo, a mais bela cidade dos Alpes italianos, que intensificou nossa relação. Na Noite de Natal, sob a aconchegante lareira do Grande Salão do Serena, um simpático hotel de quatro pavimentos e diárias que cabiam em nossos bolsos, Maria Pia me presenteou com um artesanato da região, uma delicada caixa para guardar cartas e documentos que lembrava um pequeno baú de corsários, lembrando-me, entre um sorriso travesso, “Em seu interior há um livro lacrado que deverás me prometer, independentemente do que vier a nos acontecer, somente a abri-lo no dia de teus 50 anos… No teu jubileu!”. Sem entender seu propósito eu quis saber, — “Por que somente daqui a vinte e sete anos? E por que jubileu?”. O sorriso de Maria Pia se estendeu ainda mais, — “Na antiguidade hebraica era a solenidade quando as dívidas e penas eram perdoadas e os escravos libertos!”. E rimos descontraidamente do mote.

Nos dias que antecederam o Reveillon trocamos o Serena por uma rústica pousada com chalés à beira do Lago Ghedina. Após brindarmos ao Novo Ano, amamo-nos com o frenesi dos amantes sedentos sobre um belíssimo leito de plumas de cisne encoberto por um diáfano dossel.

Sete meses após, no dia 11 de julho, eu receberia a notícia de que o voo Varig RG-820, que partira do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, com destino a Londres, com escala no Aeroporto Internacional de Orly, em Paris, realizara um pouso de emergência sobre uma plantação de cebolas, a cerca de quatro quilômetros do aeroporto francês, devido à fumaça dentro da cabine, provocada por um incêndio iniciado num dos banheiros do fundo do avião. O incêndio, a fumaça e a aterrissagem forçada resultaram em 123 mortes, dentre estes meus pais que pretendiam aproveitar o verão europeu para juntos fazermos um tour parisiense. O sonho de minha mãe era conhecer a casa em que Marcel Proust e seus familiares passavam os dias de férias, na cidade de Illiers-Combray, e onde ele se recolheria mais tarde para escrever sua imponente obra ‘Em Busca do Tempo Perdido’. O solar hoje abriga o Museu com o nome do escritor francês.

Na manhã prevista para a chegada de meus pais a Paris eu já estava a bordo do trem urbano que partia da Estação Saint-Michel —  Notre-Dame para a Estação do Aeroporto de Orly quando, pelos alto-falantes do comboio, a voz contrita do condutor informou que a Estação de Orly fora fechada em razão de um acidente envolvendo uma aeronave procedente do Brasil, que caíra a pouco menos de cinco quilômetros da cabeceira da pista do Aeroporto. Complementou afirmando que ainda era desconhecido o número de vítimas fatais.

Como um “robô humanoide”, que obedecesse ao comando de desconhecidos alienígenas, eu desembarquei na Estação Denfert-Rochereau, localizada no 14º arrondissement, no distrito de Montparnasse. Quando dei por mim eu me encontrava na Place Denfert-Rochereau, uma pequena e graciosa praça próxima às Catacumbas de Paris, à frente da estátua gigante de Leão, que simboliza a coragem e a vitória da resistência francesa.

Pensamentos dos mais disparatados se mesclaram em minha mente: a arrebatadora viagem que eu e Maria Pia fizéramos; os detalhes e o significado de cada lugar; o enigma Maria Pia, aquela que havia me prevenido, — “Por que eu, se não faço bem às pessoas?”; a notícia da queda do avião e de que nele viajavam meu pai e minha mãe, a quem não mais veria. Mortos! A indagação de o quê eu fazia naquela desconhecida praça, não distante ao aeroporto, se nada mais restava fazer martelava meu cérebro…

Nos dezesseis anos em que permaneci na Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 cursei os níveis de Licenciatura, Mestrado e Doutoramento. Minha Tese de Doutorado ‘Os Enigmáticos Heterônimos  Fernando Pessoa ou do Interseccionismo’ assegurou-me nota 9,27, a aprovação com distinção e a cátedra professoral na disciplina de Literatura Moderna Luso-Brasileira durante onze anos.

Maria Pia F. após concluir seu mestrado e retornar a Verona encastelou-se entre as sólidas paredes do seu palácio. Ela eu, apesar de tudo, menos ainda jamais apagaria da memória os momentos que juntos vivêramos…

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