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Gostoso demais – Sergio Agra

Gostoso demais - Sergio AgraNo primeiro dia de Ano Novo, longe dos ruidosos e embriagados alienígenas que invadem a aldeia, alternativa outranão me resta que não a de, com certo atraso e não sem uma dose de pungente dor,limpar dasgavetas do escritório e das estantes da biblioteca o que hádécadas rouba o espaço para o novo. Isso tem lá suas conotações, além da de apagar lembranças que já não mais têm razão de ser. É a depuração dos escaninhos da alma, dos sentimentos e paixões que transpassam o coração.E eles vão surgindo na forma de cartões-postais, de agendas, de esboços de poemas bêbados escritos em guardanapos sobre as mesas dos botequins,de cartas de uma amada que numa cinzenta manhã de outono foi-se embora, em “ais” de paixão,com o trapezista daquele fantástico e ensolarado circo.

Indiferentes à distância, ao tempo transcorrido e aos descaminhos, ressurgem na minha velha caderneta de endereços o teu nome e o número do telefone. Minhas mãos, no entanto, estão rijas e desconhecem o gesto da procura; emoção e razão empenham-se num insano conflito onde não há derrotada ou vencedora, amarga constatação de que se aniquilam mutuamente. E as saudades assomam aos pedaços, sentimentos dessangrados.

To com saudade de tu, meu desejo / Tô com saudade do beijo e do mel

Do teu olhar carinhoso / Do teu abraço gostosoDe passear no teu céu*

Tua voz, se ouvida fosse no silêncio da hora tardia, faria com que as fantasias brotassem dos escaninhos de minh‘almatrazendo à memória nossa música em surdina e o vinho generoso que tornava suave nossa embriaguez.

É tão difícil ficar sem você / O teu amor é gostoso demais
Teu cheiro me dá prazer / Quando estou com você
Estou nos braços da paz

Naqueles tempos, o estado de graça justificava a minha preguiça em escrever. Tantas foram as vezes em que me pediste uma crônica e eu argumentava, éramos muito mais do que uma crônica,éramos a própria poesia. Sem pretendermos ser uma sinfonia, éramos uma canção: Fascinação, My Way, Je ne regrette rien, Un Homme et une Femme, ao tim-tim dos cálices, à luz de velas vermelhas ou Imagine, o hino de cadaaté amanhã. Esquecer? Como?

O estado de graça cedera lugar a um imenso vazio, o estado de emergência. A crônica antes cobrada se materializou na reconciliação com a velha Olivetti*.

Foi uma reconciliação tímida, como o reencontro dos amantes após longa separação. Eram tantas as coisas a serem ditas, as palavras se atropelavam histrionicamente nas escadarias da imaginação.

O estado de graça onde ficou? Nas velas vermelhas que necessitam ser reacesas? Nos cálices agira vazios ou nas almofadas jogadas no carpete à espera dos nossos corpos em cada anoitecer? Faz-se imperativoque deixemos fluir todos os nossos anseios, as nossas angústias, nossos desejos, sem incertezas, sem medos. Torna-se vital que superemos aos ardis do orgulho e a tirania do amor-próprio descabido para reaprender o gesto da busca e deletar o você foi, dizer apenas,eu estou aqui

Pensamento viaja / E vai buscar meu bem-querer…

*Gostoso Demais, composição de Dominguinhos e Nando Cordel;

*Olivetti, marca de uma antiga máquina de escrever

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