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João e Maria continuam nas trevas

Aconteceu tudo em 1968: os estudantes se revoltaram e armaram barricadas em Paris, não para tomar o poder, mas para dele debochar. Outra ordem caduca começou a ser contestada no leste europeu com a “Primavera de Praga”, que os tanques do império soviético sufocaram. Por toda a parte a autoridade viu-se desafiada: em casa, na escola, na cama, no trabalho, nos palácios. Esse mesmo ímpeto varreu a América, onde a geração nascida no pós-guerra impunha seus valores. Se Bob Kennedy e Martin Luther King tombaram em poças de sangue, as minorias partiram para ocupar os espaços que imaginavam lhes pertencer. Já o Brasil, parou. Com os estudantes primeiro nas ruas, depois na cadeia, o regime trancou o país. A passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro e um discurso infantil do deputado Márcio Moreira Alves, propondo o boicote ao sete de setembro, irritaram os militares e serviram de gota d’água para o Ato Institucional Nº. 5. Com ele, o Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva fechou o Congresso, cassou mandatos e censurou a imprensa. A partir daí percebeu-se que esta seria uma longa ditadura. A tortura, que não constava do texto do AI-5, continuava regendo a escrita dos arquivos confidenciais dos quartéis. Vetou-se a impetração de habeas-corpus, pois o Ato Institucional proibia a apreciação judicial desta garantia nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Sem direito a habeas-corpus, sem comunicação de prisão, sem prazo para a conclusão do inquérito, o preso ficava absolutamente indefeso nos órgãos de segurança, desde o dia do sequestro até quando passasse à Justiça Militar.

Não obstante, no dia 4 de junho daquele ano, um talentoso e visionário jovem, Ronald Radde, fundava a Cia. Teatro Novo, de Porto Alegre, a mais antiga em atividades ininterruptas do Brasil.

Iniciada em um período obscuro da história recente do Brasil – “os anos de chumbo” – a Cia. sofreu cortes e censura da ditadura militar em suas produções iniciais. A peça “João e Maria nas Trevas” (1968), foi a primeira escrita e dirigida por Radde.

“Dois irmãos, João e Maria.   Pai e mãe “submissos ao” destino”:  trabalhar a vida toda na terra dos patrões, sem acesso à informação, analfabetos. quase passando fome, apesar das ricas colheitas. Surge uma luz:  um veterinário, contratado por fazendeiros da região resolve montar à noite uma espécie de “escola” e dar algumas aulas de alfabetização para os camponeses.   Maria não vai. João encontra nos primeiros livros que soletra saídas inimagináveis.   O veterinário passa a ser odiado pelos fazendeiros e pelo pai de João que nota no filho diferença de posturas, diante da sua autoridade e da dos patrões. Maria é praticamente violentada pelo filho dos patrões.  Não quer ficar mais ali e foge. Vira prostituta na cidade grande.   João resolve ficar, pois é ali o seu lugar.  O lugar que deseja ajudar a mudar”.
Esta peça teve sua exibição proibida na noite de estreia.

Entretanto, o idealismo, o profissionalismo e a excelência da Cia. Teatro Novo foi essencial para a superação destes obstáculos e para que a companhia se tornasse uma das mais premiadas e notórias do país.

Após “João e Maria nas Trevas”, seguiram se “A Fossa”, “Transe”, “B… em Cadeiras de rodas”, “Apaga a luz e faça de contas que estamos bêbados”, todas de cunho político-social. Mas Radde, na sua versatilidade, incursionou também no teatro infantil com as peças “Os Saltimbancos”; “Histórias de Bruxa Boa”, “O Mágico de OZ”; “Peter Pan”; “A Bela e a Fera”; “Caravana da Fantasia”, “O Patinho Feio”; e, mais recentemente, “Para Sempre Terra do Nunca”.

Na sexta-feira, dia 7, num evento repleto de música, arte e emoções, fui abraçar Ronald Radde e a minha saudosa Cia. De Teatro Novo onde, há 44 anos, vesti a roupagem do Beto, um malandro, gigolô e dublê de traficante, na peça “A Fossa”.

A noite já ia alta e o coração num transbordamento de emoções quando deixei o Teatro. Isso, no entanto, não serviu para apagar a realidade de que João e Maria continuam nas trevas.

Em trevas mais lúgubres e silenciosas…

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