Sergio Agra

MUITO ALÉM…

Capítulo Final Da Série As Crônicas de Aleph

Ao constatar que, diferentemente dele próprio, a grande maioria dos internados acolhidos pela Clínica era de dependentes químicos — alcóolicos e drogadictos— Aleph entendera que seria justo naquele ambiente onde se iniciara a reconstrução de sua vida escrever a história que efetivamente lhe fora dada viver. As lembranças da mãe surgiram-lhe de súbito: a senhora agregava a família e recitava nos finais de tardes dos domingos um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo. A Parábola dos Talentos, transcrita por Mateus, acudira de imediato o pensamento de Aleph, — “Porque assim é como um homem que, ao ausentar-se para longe, chamou os seus servos e lhes entregou os seus bens. E deu a um cinco talentos, e a outros dois, e a outro deu um, a cada um segundo a sua capacidade, e partiu logo… Porque a todo o que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; e ao que não tem,tirar-se-lhe-á até o que parece que tem…”.

A Aleph sequer foram dados dois, quanto mais cinco, dez talentos. Recebera um e, contrariamente ao servo preguiçoso da parábola, decidira-se por expandir e multiplicar aquele talento. Para tanto, incumbiu-me para que eu fosse até a sua casa de praia e trouxesse tudo do que ele haveria de precisar.

Ao chegar a casa escancarei portas e janelas para que um ar renovado ventilasse todos os cômodos, amenizando assim, o bafio sepulcral de que estavam impregnados. Somente após me dispus a atender o que Aleph me pedira.

Na parede dos fundos da garagem, ocupando todo o pé direito, avistei o imenso armário de mogno com inúmeras prateleiras abarrotadas de livros. Manobrei o automóvel ali ingressando de ré. Acomodei desordenadamente no porta-malas e no banco traseiro do carro os exemplares que até então se encontravam dispostos por ordem alfabética pelo nome do autor e separados em literatura nacional e literatura estrangeira. As estantes do móvel restaram vazias, exceto por uma pesada caixa depositada no topo do armário, que lembrava baús de lendários piratas. Finda a tarefa, cerrei as janelas e tranquei todas as portas. Nada havia que lá me retivesse por mais tempo. Com o veículo sentindo o peso da expressiva carga viajei non-stop direto para a clínica. Encontrei Aleph na sala de reuniões dos médicos da casa de saúde. Fora a ele permitido transformar aquela dependência numa arejada e confortável sala de aula. Em torno da grande mesa encontrava-se uma dezena de jovens, homens e mulheres, todos internos do sanatório. Dirigindo-se a três dos rapazes, Aleph pediu que fossem até o meu automóvel e trouxessem a carga de livros e a depositassem na mesa ou mesmo sobre o piso.

O largo sorriso assomou às faces de Aleph quando ele me anunciou, — “Esta é uma das minhas duas turmas.Separei-os por idade para facilitar o rimo”. Até então eu nada havia compreendido, — “Turmas? Ritmo? Do que falas?”. Ele se apressou em esclarecer, — “De ‘oficineiros’!—. E percebendo minha palermice foi mais paciencioso — Estou aqui como voluntário. Administro uma Oficina de Criação Literária”.

Fiquei feliz por meu amigo. Eu entendera o porquê da busca dos livros. Ele tornou a falar, — “O Diretor-Clínico reconheceu que estou apto para retomar minhas funções de Catedrático na Universidade. Afinal é o que me sustenta! Tenho ainda alguns momentos em que me sinto deprimido, melancólico. Isso é natural, o psicoterapeuta me tranquilizou. — Logo sua voz vibrou em tom de alegria — Vislumbrei algo muito maior aqui entre estas paredes. Cada um desses meus ‘colegas’ tem um universo incrível dentro de si. Nosso projeto é publicar até o final deste ano uma antologia. Eles são inteligentes, trazem uma bagagem de significativas vivências e, sobretudo, de sofrimentos. E a arte da escrita, bem sabes, impõe um tanto de dor…”.

Os rapazes depositaram sobre o piso os últimos volumes. A mesa de reuniões como havíamos prevísto não fora suficiente para apoiar a quantidade dos livros.

— “Vieram todos os livros que estava na casa— informei-o. — Não restou um sequer! A estante ficou vazia. Aliás, quase…”. O olhar de Aleph continha apreensão ao me perguntar, — “Não ficou nada mais no armário?”. Fui ágil em tranquilizá-lo, — “Como eu ia te dizendo, restou apenas…”. ele sequer esperou minha confirmação, — “…uma caixa que lembra um baú de corsários…”.

Ainda que o olhar de Aleph estivesse fixado num ponto vago, indeterminado, senti firmeza em suas palavras, — “Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos…. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca…”.

Ainda que o seus olhos fitassem o vazio pude sentir no semblante de Aleph a expressão de alguém que fruía do esplendor de uma paz há muito sonhada…

…Maria do Carmo. Maria Pia. Maria… Maria… Maria… Maria…

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