O Caminho de São Tomé das Letras (Capítulo final)
Com o golpe de Pinochet, o regime de exceção passara também a vigorar no Chile. Os exilados políticos não tiveram alternativas, senão a de buscar novos caminhos. Clara exilara-se em Portugal, de onde, finalmente, foi-lhe permitido escrever a primeira carta à família. Ignorava, ainda, o falecimento do pai. Na correspondência, ela perguntava por Miguel.
“Miguel nunca deixou, nesses anos todos, de nos trazer o seu conforto. É advogado. Porém, hoje, minha filha, ele é um homem casado”, respondera-lhe, em pensamentos, a mãe.
Em seu discurso de posse na Presidência da República, o general João Batista Figueiredo prometeu aprofundar a distensão política iniciada no Governo Geisel. Alguns meses mais tarde, no silêncio necessário da discrição e do sigilo, iniciava a dar seus primeiros passos, o Projeto de Pesquisa “BRASIL NUNCA MAIS”; um pequeno grupo de especialistas, liderado pelo Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, dedicou-se ao estudo da repressão exercida pelo Regime Militar a partir de documentos produzidos pelas autoridades encarregadas dessa tão controvertida tarefa, reunindo cópias de quase totalidade dos processos políticos que transitaram pela Justiça Militar brasileira entre abril de 1964 e março de 1979. Timidamente, diante de praças repletas de corações angustiantes, mudanças meritórias foram prometidas pelos que ousavam. De esperança em esperança, esse mesmo povo que, em outras épocas, peregrinou por caminhos semelhantes de aberturas políticas que acabaram durando pouco, buscava o estado democrático de direito, a liberdade de expressão e o desenvolvimento.
Pouco antes de retornar ao Brasil, Clara enviou uma longa carta à sua mãe.
Querida mãe. Lembro-me, numa das visitas tua e de papai quando me encontrava no Hospital Militar, que ele me perguntou se tinha valido a pena tanta dor. Na época, respondi que só sabia com o que eu estava comprometida e quais seriam as consequências. Passados esses anos, o sentimento que me invade é o de esperança. Esperança de que o que fizemos continue a dar frutos, porque, apesar de tudo o que nos aconteceu, fizemos a história avançar. Acreditávamos e continuamos acreditando na necessidade de construirmos um mundo sem exploradores e explorados, onde o ser humano pudesse e possa viver como ser humano, numa sociedade solidária. Se papai vivo fosse, eu lhe teria dito: Sim, continuo achando que valeu a pena.
Não voltarei para Porto Alegre. Essa cidade me evocaria tristezas e sentimentos que, por ora, prefiro conservá-los distantes, esquecidos. Vou me estabelecer em São Tomé das Letras. Alguns dos companheiros de exílio muito falaram daquela pequena aldeia, com poucos habitantes, ao sul de Belo Horizonte, na direção de Três Corações. É um vilarejo de pedra, cercado por lendas, mitos, cachoeiras, grutas, anjos e, segundo os índios, onde viveu um santo a quem chamavam de Sumé. Diz a lenda, que os colonizadores acreditaram que Sumé fosse mesmo o santo católico chamado São Tomé. As letras de São Tomé são inscrições gravadas nas grutas, no tempo em que aquele sertão ainda era mar. Quem as escreveu foram seres espaciais, descendentes dos atlântidas, moradores da Cidade Subterrânea, existente na profundeza da Gruta do Carimbado. Contam, ainda, que esta gruta vai dar em Machu Pichu, no Peru. Quem tenta conferir, não volta mais. Conte a novidade a Miguel. Diga-lhe que, independente de quaisquer circunstâncias, em São Tomé das Letras sempre haverá um manto e uma tigela com pão de centeio para abrigá-lo do frio e para saciar sua fome.
Saudades. Eternamente,
Clara.
Com a abertura política, uma era de prosperidade e democracia afigurava-se para o Brasil. Havia, porém, uma bomba no caminho. E ela explodiu, na véspera do 1º de maio, no Riocentro, no interior do carro de dois militares. Foi o ápice de uma escalada terrorista de extrema direita, iniciada com os atentados contra bancas de jornal que vendiam publicações de esquerda. O Vesúvio brasiliense dava mostras da lava podre que, num futuro bem próximo, iria eclodir.
Miguel já se cansara com as constantes ausências de sua mulher. Como sempre, havia apenas um bilhete sobre o consolo. Ela sequer soubera da morte do sogro.
Passava da meia-noite quando Miguel chegou em casa. O bilhete de Pandora permanecia no mesmo lugar. Miguel exorcizava todos os seus demônios recalcados, Cansei de saber de ti, Pandora, pelos teus bilhetes. Nesses últimos anos tem sido assim. Hoje, acabo de vez com esta história.
Miguel ligou o rádio FM, apanhou um cálice e uma garrafa de cabernet de boa safra. Abriu-a e sorveu o primeiro gole do vinho generoso. Sentou na frente da escrivaninha, destacou algumas folhas do bloco de cartas e, antes de iniciar a escrever, ouviu os primeiros versos da melodia:
“Começar de novo
E contar comigo…”
Pandora.
É madrugada. Faz frio. Ontem, durante o dia todo, fez um calor fora de época, por isso a chuva torrencial que cai desde o final da tarde. Percebo o apartamento – apesar de todos os móveis – inteiramente despido. Há um vento que penetra pelas frestas das janelas e isto me deprime mais do que já estou. Para me aquecer, abro um Chablis. Ligo o rádio numa estação de FM. Miro o antigo e imóvel carrilhão de parede. Há quanto tempo não o pões para funcionar? Cheguei há pouco do Cemitério, onde não apenas enterrei meu pai, como decidi, no caminho de volta, numa vala à beira da estrada, idealizar o teu funeral.
“Vai valer a pena
Ter amanhecido…”
O que em ti me atraiu foram o brilho e a simulada ternura que trazias no olhar, hoje mal delineados pelas incursões noturnas e pela absorção de misteriosos rastros de fumaça lançados por exóticos dragões. Na suavidade dos noturnos e das cantatas, transformei-me num andarilho. No silêncio das confidências reaprendi a amar. Permiti-me sufocar e castrar em nome de tudo que só te dissesse respeito. Permiti meus espaços serem por ti invadidos. Importava-me tão somente mergulhar no teu corpo, no teu sexo de fêmea nova e assustada: ser um náufrago na fúria incontida dos teus oceanos; destroços de nau em areias de uma praia deserta, longe de qualquer possibilidade de socorro.
“Ter me rebelado
Ter me debatido
Ter me machucado…”
Pudera desbravar essas águas profundas. Sugá-las com todos os seres que nelas habitassem e, aí, explodir, numa outra dimensão, marchetando o Universo de peixes, cavalos-marinhos, sereias e estrelas-do-mar.
“Ter sobrevivido…”
Ouço a música que elegi como hino. Bebo o vinho na temperatura. Sempre bebi só, sem tua cumplicidade, como em tudo. Ergo o cálice e faço um brinde à solene descida de tua morte. À noite, o cansaço e a frustração de ver sucumbido os esforços e os argumentos da minha tese de doutorado e a novela a ser escrita uma vez mais adiada me derruíam. Mesmo assim, eu executava um fantástico solo de violino para uma espectadora fria, distante e impassível, quando poderias ser o calor, o êxtase e a vibração de toda uma plateia. Ofertei-te Mozart, Chopin, Beethoven. Preferiste os bolerões ordinários e enfadonhos. Brindei-te com vinhos e champanhas. Bebias soda-limonada. Presenteei-te com orquídeas e violetas. Bastaram-te a mentira e o assovio velhaco de beira de calçada. Enfeitei-te com rendas e sedas do oriente. Vestiste chitas ofertadas nos balaios das lojas de departamento. Entreguei-me e te amei com as nuanças e as sutilezas de um Eros. Desejaste a trepada de um bacante irado e malcheiroso, após a jornada de cargas pesadas no cais de mentiras que estimulavas.
“Ter virado a mesa
Ter me conhecido
Ter virado o barco…”
O ideal teria sido buscar o nosso denominador comum: comer uma lasanha, beber um chope gelado, calçar um par de tênis, vestir jeans, ouvir Chico, Nascimento, Caetano. Ser, não um violino tenso, mas a flauta doce que sublimasse todas as frustrações, que aniquilasse todas as distâncias entre este instrumento solitário e uma plateia já não mais tão fria e impassível, e executasse não uma sinfonia, simplesmente uma canção. Ouço o bater da chuva contra a vidraça. Ela foi das coisas mais incômodas no teu enterro. Desejo, apenas, que ela permita que o tempo cimente e vede todas as possíveis fendas do teu túmulo.
“Ter me socorrido…”
Recordo os momentos em que fomos cúmplices, amigos, companheiros e apaixonados. Cruzamos o oceano e caminhamos pela beira da praia sob a brisa mediterrânea. Escalamos os Alpes, jogamos moedas e formulamos pedidos na Fontana di Trevi. Fizemos amor em espumantes banheiras e sobre leitos de penas de cisne num outono em Zurique. Dançamos um tango nos Jardins des Toulleries. O último?
“Começar de novo
E contar comigo…”
Não me dei conta de que abri a terceira garrafa de vinho. Tenho de estar sóbrio. Afinal, devo concluir nosso inventário e dele tentar, quem sabe, arrolar um único bem que sobreviva a nós mesmos.
“Vai valer a pena
Ter amanhecido
Sem as tuas garras
Sempre tão seguras
Sem o teu fantasma
Sem tua moldura
Sem tuas escoras
Sem o teu domínio
Sem tuas esporas
Sem o teu fascínio…”
Nos últimos anos, a música que ouvias era outra, em dissonância com tudo o que sonhávamos. Trazes o corpo e a alma envenenados. Num ato falho(?), chamaste por um nome, que não o meu. Busquei, nas promessas e nas velas consumidas, nos tarôs e nos búzios de mães de santo ladinas, o sonho que já acabara. Lágrimas vertidas ente os violinos, fagotes, harpas, flautas, violoncelos, oboés, cítaras, trompas, pianos, que explodiam numa sinfonia desenfreada, sem nexo, sem partitura: o prenúncio do apocalipse. No nosso último jantar degustamos um vinho, o que nos descontraiu. Mesmo ante a ausência de palavras compreendemos que estávamos diante do irremediável.
“Começar de novo
E contar comigo…”
Continuarei trabalhando. E a novela, finalmente, estará no papel, o que sempre duvidaste. Assim, não terei medo de não estar bem e só. Hei de impedir que os meus bruxos se apossem do meu espaço ainda transparente e saudável, que o escurecer me escureça. Vou me deitar na meia-luz do quarto imaginando minha última realidade: um dia vou morrer! e não terei nenhum remorso do bem não feito, do amor não dado. Meus sonhos não se perderam, eis que nunca o foram.
Percebo as primeiras luzes do dia, vou até a cozinha e preparo um café com leite, como se tivesse dormido a noite inteira.
A manhã é de sábado…
“Vai valer a pena
Já ter te esquecido
Começar de novo…”
Miguel foi até o quarto, acomodou umas peças de roupas em duas sacolas de viagem e, sem olhar para trás, deixou o apartamento, rumo a São Tomé das Letras.
O ruído do motor do automóvel soava-lhe como uma música, uma tocata. Estou vivo, ele pensou, E a estrada me lembra, não sei por que, as águas serenas de um oceano adornado pela lua crescente. O oceano… o luar…
Permaneceu, como que hipnotizado por alguns segundos, com o olhar fixo no asfalto, Por que não começar a novela com esta cena? pensou.
“O inverno, cabal e estranhamente, se recusa a dar as caras. O calendário de alguns anos atrás enfeita a nua parede da cozinha onde o cheiro de banha saturada parece ter-se impregnado para a eternidade. Inútil, ele anuncia os dias de um fevereiro já sumido das memórias…”