O casal de canarinhos

A casa ficava num terreno comprido e estreito. Recordo-me que possuía móveis antigos, um alto pé-direito e estava sempre arrumada. Assim era a casa da minha tia Ana, aonde íamos, eu e minha irmã, levados por nossa mãe, duas ou três vezes por mês,.

Chegávamos sempre no início da tarde; voltávamos à noitinha. O quintal era o que mais gostávamos. Logo à entrada, havia uma parreira antiga que no verão oferecia sombra refrescante, além de pródigos cachos de uva. Adiante, a pereira com seu porte alto e tronco grosso que, de tão forte, suportou que meus primos sobre ela construíssem a “casinha do Tarzan”.

A figueira ficava mais ao fundo e produzia frutos graúdos e doces, verdadeira dádiva aos passarinhos – cujo pé por eles era visitado constantemente para beliscar o figo maduro; a romãzeira, com o fruto maduro abria-se em fenda oferecendo as perfumadas e suculentas sementes. E havia os vasos de flores espalhados pelo quintal, as orquídeas, as samambaias, as espadas-de-são-jorge e amores-perfeitos, tudo cultivado com desvelo pelas mãos de meu tio Osvaldo.

Andar pelo quintal era suficiente para preencher uma tarde inteira de distração se não houvesse também o porão, a dar ainda mais um ar lúdico às brincadeiras. Era-nos, no entanto, proibido passar da porta do porão, como se fosse ele assim uma espécie de clausura, acesso restrito aos da casa.

Mas o proibido somente aguçava o desejo de explorar o ambiente inóspito e fantasmagórico, repleto de objetos em desordens.  Baús, livros, cadeiras de palha consumidas pelo tempo e teias de aranhas. Ao menor descuido, porém, rompíamos a guarda. E o propósito era chegar ao fundo do porão, onde apenas uma tênue claridade passava por um óculo indicando, turvamente, os estreitos caminhos a percorrer; aos poucos, com dificuldade, íamos vencendo os obstáculos, ora passando por cima dos entulhos, ora nos arrastando sobre o chão úmido.  Ao chegar ao fundo, ficávamos por um bom tempo escondidos, com o coração a pulsar ao deleite de ter alcançado, para nós, algo quase intangível. Depois, voltávamos com a mesma dificuldade, e caíamos em contentamento porque ninguém percebera a desobediência.

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Meu tio criava passarinhos presos em gaiolas, penduradas no teto em cima do tanque de lavar roupas. Possuía um casal de canários que gorjeava melancólico, mesmo na presença de pessoas próximas à gaiola, ao contrário do cardeal da crista vermelha que, a qualquer aproximação, arisco, debatia-se em voo. E Havia as caturritas mantidas separadas, pois juntas – diziam – brigariam até a morte.

Eu ficava com pena dos bichinhos presos dentro daquele minúsculo espaço. Não conseguia entender como que os canarinhos, mesmo confinados, lançavam ao ar um trinado tão afinado e bonito. Certa vez, não me contive: abri as portas de todas as gaiolas, e esperei. Uma por uma as aves se foram do cativeiro. Apenas o casal de canarinhos, para surpresa minha, não deixou a gaiola.

Dias depois, soube por minha mãe que os passarinhos do tio Osvaldo haviam fugido, pois alguém abrira – de propósito – as portas das gaiolas, insinuando que fora eu o autor do “vandalismo”. Somente o casal de canarinhos, disse ela, ficou fiel ao dono, certamente porque há pouco a fêmea havia dado cria.

O instinto de perenidade da espécie, certamente, fora mais forte que a conquista da liberdade…

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