“O cordeiro de Deus”
Dois anos após o dia em que foi sequestrada na parada do bonde e impelida no banco traseiro de uma camioneta Veraneio, Clara soube que o colega com quem se refugiara na Casa Sloper, ante a perseguição da polícia, era um “dedo-duro”. Presa, foi conduzida ao DOPS – Departamento de Ordem Política e Social.
Ao chegar à delegacia, numa sala com quase uma dezena de policiais, arrancaram-lhe as roupas, perguntaram seu nome. À voz de comando de Cacique, ligaram os dois potentes amplificadores estrategicamente dispostos em ambos os lados da cabeça de Clara Eunice Quevedo e, sob o altíssimo volume da música erudita, aqueles homens revezavam-se nos socos que desferiam contra o corpo da prisioneira, principalmente na boca do estômago e no tórax. Fizeram-lhe algumas perguntas. Clara mal podia falar.
Aplicaram-lhe choques elétricos no bico dos seios. Ela permanecia calada. A violência empregada no interrogatório recrudesceu. Com algumas costelas e o esterno fraturados, a expelir sangue pela boca, colocaram-na no “pau-de-arara”. Desfecharam-lhe pontapés na cabeça e no corpo inteiro.
Queimaram-lhe a vagina e o útero, penetrando-lhe fios e aplicando-lhe novas descargas de choques. A dor, a raiva e o ódio, não obstante o sentimento de impotência, todos eles misturados, pareceram, mesmo perante aquele quadro de horror, encorajar Clara a continuar calada.
Quase desfalecida, os policiais interromperam o suplício e a deitaram sobre um banco de madeira. Ela chegou a pensar que a macabra sessão terminara. Então, a arrastaram e a penduraram novamente no pau-de-arara, vedando-lhe as narinas. Um dos carrascos introduziu uma mangueira na boca da supliciada e despejou um violento jato d’água.
O sangue de Clara jorrava para o interior de uma bacia colocada sob seu corpo e, mesmo assim, eles enfiavam a mão, envolta em jornais, pela sua vagina. Quanto tempo durara aquele inferno Clara jamais pôde mensurar. Lembra-se, apenas, de que os sons dos potentes alto-falantes e os gritos dos torturadores foram se tornando cada vez mais fracos. Um deles direcionou o intenso facho de uma lâmpada sobre os olhos da militante.
Como ela não esboçasse qualquer reação, Cacique ordenou que fizesse uso do amoníaco para reanimar a interrogada. “Não adianta, ela não reage”, respondeu-lhe o médico que indicava quando podiam ou não continuar a tortura. Transferida inconsciente para o Hospital Militar, lá permaneceu por quarenta e oito dias. Neste ínterim, através da interferência de um juiz militar, amigo de longa data do pai de Clara, Dr. Chagas Lemes, logrou-se a expedição do competente Alvará de Soltura.
Por isso, a segurança permanente exercida pelos agentes à porta do quarto de Clara foi relaxada. Havia, no entanto, uma condição por parte das autoridades repressoras: Clara, tão logo obtivesse as condições para a alta, deveria retornar ao DOPS e redigir um documento afirmando ter sido muito bem tratada naquele Departamento e que lá já entrara com as fraturas, conforme atestavam as radiografias.
No dia aprazado, a mãe recolheu uma muda de roupa e um par de confortáveis mocassins, que fazia conjunto com a calça e a jaqueta de couro da filha, envolvendo-os numa manta. Acomodou o embrulho numa pequena mochila e pediu a Miguel que a acompanhasse até o hospital. Dali, ela e Clara seguiriam, sob a custódia de dois agentes, até a delegacia do DOPS, onde a militante assinaria o documento imposto em troca de sua libertação.
Após devidamente identificados pelas sentinelas do portão de acesso ao hospital e preenchidas as fichas de informações pessoais, Dona Yvonne e Miguel foram autorizados a subir até o quarto de Clara. Miguel horrorizou-se ao avistar a amiga. O aspecto era o de uma mulher extremamente debilitada, dezoito quilos mais magra e, aparentemente, sob o efeito de drogas.
Porém, a expressão do olhar da ativista desmentiu essa ideia. D. Yvonne avisou que desceria à recepção para as providências da alta. No térreo, próximo à saída, os agentes já estavam a postos para a remoção. Ainda no apartamento, Clara perguntou a Miguel:
– E então?
– Se soubesses o ódio que carrego. Tive ímpetos de invadir o Palácio da Polícia e explodi-lo, pondo um fim em tudo.
– E teria valido a pena este gesto?
– E, acaso, vale a pena viver neste inferno, onde milico e policial torturador descarregam os seus recalques?
– Pela luta a ser travada continuo achando que vale a pena – ela respondeu. – Continuo viva e de luto pelos companheiros que foram assassinados. Irei em busca dos meus sonhos, com a certeza de que estou lutando por uma causa justa.
– Tu já estás marcada pelos “homens”. Tua soltura, além disso, foi condicionada.
– Acaso imaginas que sairei daqui feito cordeiro de sacrifício e compactuarei com a traição?
– Não conseguirás resistir a outras “sessões”!
– E quem disse que eu volto para o DOPS?
– Tens alguma outra saída?
– Sim! E será pelo portão principal do hospital! Conto contigo!
– O quê? Os “ratos” estão te aguardando na recepção. Há sentinelas em todos os muros desta fortaleza.
E Clara expôs-lhe o plano.
– É arriscado demais! – Miguel tentou reconsiderar.
– Sei que é, mas tudo vai dar certo!
Clara foi taxativa. Miguel estava atarantado, mas agora era tarde para voltar atrás. Ademais, tratava-se de uma questão de honra pôr a salvo a vida daquela audaciosa mulher.
Na recepção, despediu-se de D. Yvonne e cruzou pelos dois agentes. Na guarita das sentinelas, assinou a guia de saída, recebeu de volta o seu documento de identidade e abandonou o hospital. Na esquina da Maryland com a Marquês do Pombal, o “taxi” desocupado o aguardava. O veículo pôs-se em movimento, e, em seguida, contornou o quarteirão e, na Rua Germano Petersen Júnior, o motorista estacionou o automóvel.
Em silêncio, a discreta, quase impercebível atendente empurrava pelo corredor do terceiro andar do Hospital Geral Porto Alegre o pesado carrinho. Nele se encontravam trouxas com roupas de cama que recolhera dos quartos. Na frente do apartamento de Clara, olhou para os dois lados, certificando-se de que não havia ninguém à espreita e, com esta certeza, deu duas breves pancadas na porta. Clara esgueirou-se, de imediato, para dentro de um dos sacos vazios.
A atendente rumou para o elevador de serviço onde o ascensorista, atento a qualquer movimento inesperado, as aguardava com a porta aberta. Acionou o controle. No segundo andar, o elevador parou. Os dois “funcionários” entreolharam-se. Clara percebeu a parada imprevista. A porta abriu-se e um menino, de sete ou oito anos, fez menção de embarcar. O ascensorista perguntou-lhe o que queria.
– Passear de elevador! – respondeu o garoto.
– Este não é um elevador de passeio – tornou o homem. – É de serviço, está vendo?
– Não faz mal! O passeio é o mesmo.
– Certo, meu guri – o ascensorista olhou rapidamente para o seu relógio – só que lá embaixo ele vai ficar muito tempo parado.
– Mas eu quero andar de elevador! – insistiu o moleque.
– Vamos fazer o seguinte: vai até aquele elevador – apontou-lhe o elevador de transporte de macas e pacientes – vou mandar ele vazio, só para ti, combinado?
– Tá bom! mas vê se não demora!
– Demorar é o que menos quero!
Ao fechar com rapidez a porta do elevador, o ativista infiltrado pelo comando da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares olhou significativamente para a atendente, sua companheira na empreitada.
No saguão do hospital, um dos agentes estava inquieto. Demonstrou ao colega sua preocupação:
– Não acha que a “mercadoria” tá demorando demais?
– A “velha” dela ainda tá ali no balcão acertando os papéis, não “esquenta”!
– Mas já era tempo pra ela ter descido.
– Te aporrinhas por coisa pouca.
– É melhor não confiar. Depois, vai sobrar pra nós. – Consultou o relógio de parede sobre o pórtico da entrada. – Sabe duma coisa, vou é conferir. Tu fica de “campana”. Qualquer suspeita, prende o grito! – E disparou na direção do elevador.
Poucos minutos depois, o policial surgiu, literalmente jogando-se escada abaixo, aos gritos:
– Ela não tá mais no quarto!
– Por aqui ela não passou, tenho certeza. – respondeu o outro.
– Pode ter saído pela porta de serviço! – insistiu o primeiro policial.
– Mesmo assim eu teria a visto sair. O portão é a única saída do hospital. Não saiu ninguém por ali, nenhum carro, só o caminhãozinho do lixo.
– Mas é claro, sua besta! Vamos, depressa! Corre! Temos que alcançar este maldito caminhão antes que seja tarde demais!
Na avenida Cristóvão Colombo, dois quarteirões acima do hospital, a viatura policial ultrapassou e interrompeu o percurso do caminhão. Assustado, o motorista não manifestou qualquer reação.
– O que tu tá levando aí? – indagou um dos policiais.
– Lixo, senhor.
– Te arranca dessa cabine, tu e o teu ajudante! Bota tudo que é latão na calçada e abre um por um.
Trêmulo de pavor, ao motorista apenas restou obedecer. Ele e o auxiliar iniciaram a operação de descarregamento dos latões, depondo-os sobre a calçada.
– Levanta as tampas e vai tirando essa merda toda das latas!
– Mas, senhor… – este era o motorista.
– Não discute! Faz o que te mando!
Os latões foram abertos e esgaravatados o seu interior. Sobras de comida, cascas de batatas, cebolas, talos de legumes, latas de compotas e de azeite jaziam sobre o passeio. A cena atraiu um grupo de curiosos. O agente policial não suportou:
– Vocês aí… circulando! Vamos, circulando!
Terminada a fracassada verificação, o mesmo policial, o terror estampado no rosto perguntou:
– O que vai ser de nós?
Enquanto isto, um saco contendo “roupas sujas” era descarregado do carrinho e embarcado no “táxi” dirigido por outro dos companheiros do Movimento. Sem chamar muito a atenção, cortava as ruas e avenidas da cidade, rumo a Estação Ferroviária Diretor Pestana.