O cristianismo em crise

Rodrigo Trespach
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A renúncia de Bento XVI trouxe novamente a Igreja Católica para o foco da mídia e reacendeu antigas discussões sobre o futuro do Vaticano. Discussões que vão desde a insistência em manter uma doutrina ortodoxa em um mundo em transformação até o próprio fim do papado, segundo as profecias de São Malaquias – pelo que escreveu esse abade irlandês, o papa alemão seria o penúltimo bispo de Roma.

Pascal afirmou no século 17 que “os homens jamais fazem o mal tão completamente e com tanta alegria como quando o fazem a partir de uma convicção religiosa”. Que convicção religiosa tem o cristianismo moderno, representado principalmente pela tiara papal? Tem o cristianismo moderno seguido os passos de seu fundador ou é hoje apenas uma caricatura do que pregou Cristo, desenhada ao longo dos séculos pelo homem? Profecias a parte, o que realmente se pode refletir sobre a origem da igreja e do cristianismo e sua real influência sobre o mundo moderno com a renúncia de Bento XVI e uma possível crise no cristianismo católico?

Os dogmas fundamentados pela Igreja Católica e da mesma forma seguidos pelas demais denominações cristãs, protestantes e evangélicos pentecostais, são baseados em textos cristãos primitivos, nem todos aceitos com unanimidade e alguns, como os próprios sinóticos, adulterados ao longo do tempo. Naquela época os seguidores de Cristo sequer se denominavam cristãos, eram nada mais do que uma das muitas seitas divergentes do judaísmo. A própria formação do cânon só ocorreu em sua forma definitiva, como vemos hoje, no Concílio de Trento, em 1546. Antes disso, por mais de mil e quinhentos anos, ocorreram concílios e acalorados debates sobre qual texto devia ou não ser inserido na Bíblia cristã.

Crucial para a consolidação da doutrina católica sobre o restante dos grupos cristãos primitivos foram os quatro primeiros concílios, ocorridos entre 325 e 381. O primeiro deles, em Nicéia, em 325, foi marcado pelo debate entre católicos e arianos. Os seguidores do bispo Ário rejeitavam o conceito da trindade, ou melhor, da dualidade, já que o debate era sobre serem Cristo e Deus o mesmo ser (consubstanciais). Só em concílios posteriores o debate sobre o Espírito Santo veio à tona e foi incluído no que se denominou de Santíssima Trindade. Criada sob debates teológicos e com interesses políticos – o cristianismo fora aceito como religião oficial do Império Romano nessa mesma época – o dogma primordial do cristianismo é uma criação humana.

Outro dos concílios que marcaram profundamente a vida cristã foi o de Éfeso, em 431. Apenas nesse concílio, quatro séculos depois de morte de Cristo, Maria foi declarada “theotókos”, ou seja, Mãe de Deus. Os cristãos primitivos, que tiveram contato com o próprio Cristo, nunca se referiam a Maria como tal título. No entanto, os bispos que pregavam o contrário, como Nestório de Antioquia, foram considerados hereges, destituídos e perseguidos. A partir desse momento, agora como religião oficial do Império, o cristianismo do bispo de Roma passa a ditar as normas.

Os historiadores, muitos católicos, provaram que o cristianismo romano selecionou aquilo que bem lhe servia para compor o cânon. Destruindo ramos rivais, principalmente os chamados esotéricos. Dessa época são os pergaminhos escondidos em Qumran, no Mar Morto, descobertos em 1947, ou os manuscritos de Nag-Hamadi, no Egito. Todos servem como prova de que houve grupos divergentes do católico e que foram dizimados quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano e depois quando Estado e Igreja se uniram, de forma muito simbólica, no Natal de 800, com a coroação de Carlos Magno.

A formação da hierarquia na Igreja e a formação dos dogmas foram fundamentais para a consolidação de seu poder. A Igreja substituiu o decadente Império Romano do Ocidente como um Estado paralelo ao Estado político. Se no princípio para ser cristão bastava acreditar no Cristo e receber o batismo, com o tempo a Igreja monopolizou o contato com a divindade. Não havia chance de o homem comum chegar até Cristo sem a intervenção do clérigo e da Igreja. A Igreja havia criado a dependência, ser cristão, e católico, passou a ser essencial dentro do direito civil. A Reforma Protestante no século 16 eliminou antigos dogmas e dividiu o poder da Igreja, mas, mesmo assim, manteve rituais e simbologias desconectadas do cristianismo primitivo – observem, por exemplo, os símbolos da Páscoa ou do Natal, vinculados a deidades pagãs.

Cristo deixou a mensagem, o caminho, mas a Igreja fez de sua doutrina uma religião bem diferente, criada pelos homens, com seus defeitos, dogmas e muros. No que consiste acreditarmos na Virgindade Mariana, na Imolação do Cordeiro Pascal, no celibato de Cristo ou na própria infalibilidade papal? A verdadeira fé cristã não deveria estar no que Cristo pregou? Cristo não é modelo a ser seguido? Não temos ai um modelo de amor de paz perfeito? Por que então nos mantermos sobre dogmas que pertenceram a um passado distante e serviram de instrução a outros povos?

Leon Rivail resumiu o princípio que deveria reger o cristianismo em constante transformação: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente à razão, em todas as épocas da Humanidade”. Sejamos, pois, cristãos, no sentido mais puro e original da palavra. Deixemos de lado as diferenças dogmáticas e os preceitos que foram criados pelo homem ao longo dos séculos – e que nunca fizeram parte dos ensinamentos do Cristo -, pois é esse o cristianismo que está em crise.

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