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O epitáfio

“Mãe exemplar, mulher simples e bondosa, deixou um legado de humanismo, generosidade e exemplo de superação. Adorava dançar, cantar e trovar. Cheio de sonhos era estimado por todos. Gostava de cozinhar, fazer bolinhos de chuva, cuidar do jardim e das flores. Dedicava seu tempo a tarefas religiosas. Extraordinário, inteligente, culto, exemplo de conduta ética. Sempre em contato com a natureza, era dedicado à família. Tinha satisfação em receber as visitas dos filhos e netos. Gostava de viajar de carro com os filhos e contar histórias para os vizinhos, apontando a imensidão dos céus e suas estrelas. Frequentava a missa todos os domingos, gostava de conversar com as pessoas e prezava pela sua honestidade”.

Esta é a tônica, o lugar comum dos obituários estampados em nossos jornais diários. Os falecidos, invariavelmente, sempre foram “do bem”: generosos, éticos, bons pais, bons maridos e esposas, leais e sinceros amigos, caridosos e ricos em talentos artísticos, botânicos e musicais.
Será que, quando do retorno à Pátria Espiritual, todos levarão na bagagem uma biografia tão divina, exemplar e dadivosa? Depois de morto o sujeito sempre é lembrado como “bonzinho”, quase digno de canonização?

O obituário – post mortem, por óbvio – redigidos por familiares ou amigos do(a) falecido(a), parece ter como função prestar um empurrãozinho no “passaporte verde” e no “visto” de entrado para o Paraíso. Amém!

Quero crer que, se o sujeito fosse honrado mesmo e – a exemplo do testamento em vida – deixasse redigido de punho próprio seu obituário, dispensaria, pelo menos aí, eventuais manifestações de exagerada megalomania.

Para Carl Jung, médico psiquiatra suíço, colaborador de Freud, Persona significa máscara. A palavra vem do teatro grego, onde cada personagem utilizava uma máscara para construir seu personagem. A palavra personagem, por sua vez, surgiu da palavra persona.

A persona é como se fosse um papel para interpretarmos para sermos vistos pelos outros.

Jung percebeu que nós agimos de maneira diferente em cada ambiente social, de que precisamos ser aceitos para pertencer ao grupo, e temos que nos adaptar dependendo da circunstância.

Como exemplo: Na faculdade eu sou aluno e quero mostrar aos meus professores que presto atenção, não converso, não falto, tiro notas boas; em casa eu sou filho, tenho que respeitar minha mãe, ajudar com alguns afazeres; com minha namorada tento ser perfeito em todos os aspectos. Cada um destes papéis é uma persona, uma máscara para o meu eu. Tentando alcançar seu objetivo de ser bem visto e aceito.

Pode ocorrer de o indivíduo utilizar a persona de tal maneira que ele vive como gostaria de ser, e não o que realmente é. Exemplo: um policial que é tenente vive essa persona em todos os lugares. Em sua casa ele trata sua família como se estivesse num quartel general com regras, punições e tudo o mais.

Mas se por ocaso eu viver sem persona? A pessoa não será aceita pela sociedade, não conseguirá se relacionar com alguma pessoa sequer ou viver em qualquer ambiente, pois jamais conseguirá se adaptar às circunstâncias, e jamais estará receptivo para novas posturas e pontos de vista.

Assim, voltando aos obituários, poderíamos imaginar a Roseana Sarney redigindo o de seu pai, o coronel do Maranhão? “Sócio fundador do Senado Federal, foi um homem generoso, ético, nunca mudou de “lado”. Deixa saudades eternas nos desassistidos do Estado do Amapá”. Imaginar-se a analfabeta cerebral, viúva Marisa Letícia, informando: “Luiz Inácio era um marido fiel, operário, mesmo sem nunca ter lido um livro, chegou ao cargo máximo da República. Abstêmio, homem sem vícios, ingênuo, sempre confiou nos seus mais fieis amigos Genoíno, Dirceu, Marcos Valério e Carlinhos Cachoeira, de quem jamais soube algo em desabono. Não deixou bens a serem partilhados”. E o de Renan Calheiros, Collor de Mello, Maluf?

Por isso, Guiomar, de antemão, estás encarregada de providenciar não o obituário, e sim meu epitáfio:

“Aqui jaz meu marido: narcisista, crítico, mordaz, irresponsável e egoísta. Varou madrugadas ao som dos violões, ao sabor dos bons vinhos e da boa mesa com os amigos de copo e de sempre. Constante no amor leal. Louras, morenas, foram o ideal, pense você o que quiser, amou em todas somente a mulher”.

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