O Nadador
O inverno cabal e estranhamente se recusa a dar as caras. O calendário de alguns anos atrás enfeita a nua parede da cozinha onde o cheiro de banha saturada parece ter se impregnado para a eternidade. Inutilmente ele anuncia os primeiros dias de um fevereiro já sumido das memórias.
As tardes mormacentas deste primeiro agosto do novo milênio enlouquecem até mesmo as aves de arribação que sobrevoam as dunas e os telhados das casas nesta praia quase deserta. Desatinados, esses pássaros voejam sem saber qual o seu norte. Sinto-me mais uma nesse bando de aves tresloucadas. O silêncio apenas é desvirginado pelo plácido rumorejar das ondas na rebentação. O mar parece ter o furor esmaecido ante o descompasso das estações.
Aqui cheguei ao entardecer, após uma longa e tensa viagem. Apanho no porta-malas do carro a única bagagem e os mantimentos que entendi suficientes para uma breve estada. Abro portas e janelas para ventilar a casa e amenizar o bafio sepulcral que ela encerra.
Estou extenuada até a morte por uma longa agonia. Minha excessiva fadiga induz-me a deitar e logo o sono se apodera de mim.
Durmo profundamente. Entre sonhos e vigília – não fiz distinção – vislumbro, muito além da rebentação, o que parece ser o solitário Nadador. Corro ao alpendre para vê-lo melhor. Mas ele se esconde por detrás de uma vaga.
Faz três dias que me encontro nesta casa, o Chalé Grande. A casa pertenceu a meu avô paterno, e por ele ficou assim batizada. É uma enorme construção de madeira, de dois pisos, cingida por um avarandado. No rés-do-chão se encontram a sala de jantar, com a comprida mesa ao centro, rodeada por banquetas forradas com motivos florais, já rotos e sem viço, a cozinha, o único banheiro e os três quartos destinados aos adultos: meus avós, os dois casais de tios, que se revezavam na temporada de verão, e uma enigmática e amargurada tia, a Solteirona Asmática.
No segundo piso encontra-se o sótão. Ali ficavam as camas em que dormíamos, de um lado, os rapazes e, do outro, nós, as meninas, separados de forma engenhosa por uma cortina suspensa por um consistente fio de arame que se estendia desde a parte fronteira do Chalé até a escada de acesso ao piso inferior. Éramos, ao todo, nove. Eu, a mais moça, o estorvo de todos aqueles primos já entrados na adolescência. Criança desamparada, introvertida e sorumbática, como me consideravam, não poderia participar daquele universo aparentemente feliz e descomprometido.
Dos primos, Totonho, desde a vez primeira que passei as férias nesta praia, era o mais terno, ao menos para mim. Não o afirmo pelo fato de ter apenas quatro anos mais do que eu. Muitas foram as tardes em que me desafiava para uma corrida. Disparávamos rumo às dunas que ficavam mais distantes da praia. Galgávamos a grande montanha de areia e, no cimo, nos deitávamos, arfantes, lado a lado, olhos cerrados pela luminosidade do sol. Eu ouvia a respiração ofegante de meu primo, o suor a escorrer do seu braço de encontro ao meu e sentia minha pele arrepiar de intenso prazer. Ali, naquele universo de paz, permanecíamos, em silêncio, sem tempo determinado. Retornávamos ao Chalé com as primeiras sombras da noite.
De outra feita, ao alcançarmos o cume, exaustos pelo esforço, meu primo estirou-se sobre as areias. Os braços abertos e os pés entrecruzados, não sei por que, me lembraram a figura de um Cristo adormecido sobre as alvas areias. Repousei minha cabeça no seu braço direito, exatamente sobre a marca rosácea em forma do ferro de uma lança, tal o desenho do naipe de espadas de um jogo de cartas, que ele trazia desde que nascera. Ali, me deixei abandonar. Creio que, ante aquela paz e mansuetude, e a certeza de que, naquele momento era aceita por alguém, quedei-me na inconsciência até os sonhos. O sol se pusera por detrás das montanhas quando, no silêncio de sempre, regressamos, desta vez de mãos dadas.
Hoje o nosso antigo dormitório nada mais é do que um carcomido depósito onde estão confinadas as lembranças deste velho e decadente Chalé Grande e os fantasmas daqueles que se foram.
Após três dias de angústias e de um tênue fio de esperança, período em que o Chalé fora dominado por uma convulsão inimaginável, encerraram-se as buscas ao corpo de Totonho. Ele desaparecera, além da rebentação, e as águas jamais permitiram que retornasse.
Naquela tarde, encetei uma cega e tresloucada corrida ao cimo das dunas que em segredo nos pertenceram. Ali exorcizei todas as minhas dores. Dos ganhos que até então tivera as perdas a eles se sobrepuseram. Verti as lágrimas dos derrotados, lágrimas de quem se extraviara do referencial de afeto e do reconhecimento de existir. Totonho sabia de mim. Sabia que, na clausura e no silêncio, eu lhe dedicara o mais fiel e imaculado amor.
Desperto com a súbita ventania e os primeiros respingos da chuva que se fizera anunciar desde ontem. O bramido do oceano ultrapassa as dunas e as matas que se estendem logo atrás delas, para finalmente alcançar as montanhas. Distingo as ondas que atingem a alturas jamais vistas. O meu Nadador, com toda a certeza, hoje não virá para o mar. Lanço este pensamento aos ventos como se enviasse um secreto desafio à coragem daquele nadante. A passos lentos, sigo até a praia. Vou cotejar os limites da ousadia do Nadador.
Na tarde em que Totonho entrou nas águas para dela não mais regressar o tempo também estava opressivo. Por que não fôramos para a nossa duna? Será que me encontrava, naquele dia, feito um caramujo, uma ostra enclausurada para o mundo e as gentes? Até para ele, Totonho?
Alcanço a praia e, inacreditável, lá está ele, o Nadador! Aceitara o desafio por mim lançado aos ventos? Afrontava, com braçadas ritmadas que acompanham a harmonia de alguma música celestial, as forças da natureza no absurdo duelo que ora se desenrola? Quero gritar-lhe que desista. Mas ele, de longe, faz um sinal me encorajando para que eu o siga. É o convite, o sinal que esperei por toda uma vida. Desatinada, entro no mar. Ondas violentíssimas tentam me impedir.
Cerro os olhos, engulo o sal das águas, mas prossigo resoluta no meu intento. Os vagalhões me cegam e afogam. Ofego. Sinto que as forças me abandonam. Esmoreço. Arde-me a garganta. Quando estou a um átimo de desfalecer o oceano se acalma, as águas tornam-se plácidas e uma intensa luz paira sobre a linha do horizonte e refulge no dourado dos longos cabelos e da cerrada barba do Nadador que se aproxima, estende-me os seus braços e me acolhe. Não se faz necessário que eu vislumbre a marca rosácea em forma do ferro de uma lança que ele traz no braço direito.
– Então, era você que me esperava? – digo-lhe com a voz mais terna do amor. E me deixo levar, de mãos dadas, para o infinito do oceano.
Como sempre sonháramos.