O Rio
Da trilogia “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo
grãos de areia como pequeninas
estrelas…
Ouviu o clamor furioso das águas revoltas chocando-se contra o promontório. A ventania persistente provocava redemoinhos nas areias da praia. Foi, então, que ela surgiu, de repente, os pés descalços, envolta por negras quase transparentes sedas, na noite inda criança. Sem alarde, A Guerrilheira cruzou o caminho de cada anônimo navegante, sem se fazer notar, sem que eles percebessem, sequer, o lamento que se espargia de sua alma e do corpo ulcerado. Impossível, no entanto, ocultar-se por muito tempo nas sombras do anonimato. As luzes do cais e dos letreiros das tabernas refletidas nas pedras úmidas brilharam como spots num palco onde ela era o cisne negro em seu próprio bailado de morte. Ela bailou… Bailou pisando os grãos de areia da praia que cintilavam como pequeninas estrelas. Mestre Araújo testemunhava, em respeitoso silêncio, a misteriosa coreografia. A Guerrilheira era sublime em sua negação da Morte. Não revelava o desespero ou, paradoxalmente, a submissão dos desenganados perante o inevitável. Firmava a certeza de que jamais haveria a entrega sem o derradeiro combate. Os braços, tais asas tremulantes, adernavam, num extremo esforço, tolhendo qualquer tentativa da Traiçoeira em roubar-lhe a altivez. Ela bailou… bailou… Recatadamente, deixara para trás a aldeia, seus homens, seus vícios, suas mentiras e hipocrisias. Na margem do rio, A Guerrilheira olvidou as dores e os sofreres. Com o coração em transbordamentos de alegria e de encantos, Mestre Araújo evadiu-se da estase em que até então se mantivera e, em tresloucada corrida, projetou-se na direção da suave visão.
A Guerrilheira, agora, era um cisne negro.
Como se tal gesto pudesse abrandar todas as lembranças doridas e apagar as cicatrizes que trazia na alma, Mestre Araújo prescindiu da mão esquerda na roda do leme e, com vigor, esfregou os olhos congestionados, redobrando seus cuidados para com as águas do Ibirapuitan. A torre do comando encimava um cubículo desprovido de qualquer conforto, destinado à carga e a alguns poucos que ali se aventurassem viajar, sobretudo em dias tormentosos como aquele. O velho navegante sabia, ali estavam eles, anônimos aventureiros, aninhando-se como podiam do frio e da umidade que traspassava o madeiramento da cabine, do dilúvio que parecia não ter fim. Mestre Araújo, sem desviar os olhos do leito revoltoso do rio, inclinou-se e recolheu uma garrafa de canha, cheia até a metade, dela sorvendo um longo trago para se aquecer. Ele sabia que, no íntimo, era para apagar, inutilmente as remebranças da imagem d’A Guerrilheira.
*O pasticho, assim como o retoque , nada mais é do que a imitação ou decalque de uma obra literária ou artística, frequentemente SEM objetivos satíricos ou humorísticos, como a paródia e a sátira. Por serem “exercícios de estilo” (o pastiche. a paródia, o plágio, o retoque, a sátira, a paráfrase, a alusão, a citação e o plágio), ficam geralmente adstritos ao “consumo interno”. Faço, agora, exceção.