O tio da estrela

Da Série A Praça Júlio de Castilhos e a Turma do Murinho”

Durante as madrugadas, por duas ou três vezes, se ouvia o silvo do apito de Macaco Baio, o guarda noturno da Polícia Civil. Embora o som fosse para anunciar que tudo estava tranqüilo, no silêncio da noite soava lúgubre e assustador para as crianças, que, amedrontadas, escondiam a cabeça com o cobertor.

E foi Macaco Baio quem, numa fria madrugada do inverno de 1955, rendeu o Alemão Eleur, na frente da loja da Dona Tereza, com a sua adaga, após ter sido chamado pelo apelido. Eleur ficou com a ponta da faca espetada na garganta, quase a furá-la.

— Repete, filha da p… — disse o covarde policial, se prevalecendo somente porque portava uma arma na mão. — Repete — insistiu com tom alucinado.

Eleur não podia balbuciar nenhuma palavra, tamanho o medo e a pressão que a ponta da lâmina fazia na sua garganta. Os amigos ficaram imóveis e surpresos pelo horror da cena que se apresentava. Qualquer reação seria, com certeza, o fim do Eleur. O tempo que se seguiu parecia eternizar-se. Foi Cabeção que, com voz serena, persuadiu o pusilânime a baixar a arma.

— Deixa disso, seu guarda. Foi apenas uma brincadeira, sem maldade. Por uma bobagem o senhor pode desgraçar a sua vida e a do rapaz. Guarde a faca — insistiu, quase em tom de suplica.

Novo silêncio. Aos poucos, porém, Macaco Baio foi relaxando a pressão, baixando a arma, sempre com o olhar fixo e raivoso no Eleur. Ao embainhar a faca, arrematou à vítima:

— Dessa vez vou te poupar, mas lembra: eu sou a “otoridade”… — E seguiu na sua ronda noturna como se nada tivesse acontecido.
Meses depois, Macaco Baio teve o fim que quisera dar ao Eleur: dentro da sua casa, após violenta discussão, foi degolado pelo genro. Morto caiu de bruços sobre uma mesa, o sangue a jorrar-lhe, os olhos esbugalhados, como se expressassem todo o horror do qual fora vítima.

* * *

Lá pelas onze da noite, invariavelmente, o velho bonde Auxiliadora, batendo e rodando seus ferros sobre os trilhos da Rua Mostardeiro, anunciava que aquela seria a sua última viagem em direção ao Centro. Depois, só no dia seguinte.

* * *

Após o relógio do Colégio Bom Conselho ressoar quatro horas, começavam a surgir as carroças do leiteiro e do padeiro em suas fainas diárias. O leite era engarrafado em litro de vidro e a tampa de alumínio; as garrafas acomodadas em engradados de ferro — de seis litros — transportadas em carroças. O seu tilintar nos engradados, ante o andar da carroça era inconfundível. Entregue ao freguês, o leite deveria ser fervido, caso contrário, coalhava.

Os pães, recém saídos do forno, fresquinhos, eram deixados nas portinholas das residências e, o leite, a um canto da porta. Leiteiro e padeiro possuíam as chaves dos edifícios, sem as quais seria impossível realizar a entrega. As contas eram acertadas depois, num outro momento ou no fim de cada mês. Havia um leiteiro, o “Seu” Costa, que era a alegria da gurizada.

Ao contrário dos demais, valia-se de um caminhão para transportar o leite. Passava pela Praça duas vezes por dia: a primeira na madrugada, a outra à tarde, por volta das três ou quatro horas. Nesta viagem, entrava na Vila Jardim Cristofel e ia até o seu fundo, para manobrar. No trajeto, arrecadava a molecada que esperava ansiosa pela carona na caçamba do caminhão ida e volta. “Seu” Costa era tio da cantora Elis Regina.

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