Professor Wiltgen
No final dos anos 50, o Professor Edgar Wiltgen foi morar no edifício Moinhos de Vento, prédio do Bar da Júlio.
Solteirão convicto, logo fez amizade com a turma do bar e sempre reunia uma grande roda em volta da sua mesa: José Rosito, Paulino, Tão, Antoninho, Asteca, os irmãos Rosa, Carreta, Saul Barros, os Vignoli, Zeca, Alemão Álvaro, Ivan Faria Corrêa.
Bacharel em Direito e formado em Filosofia pura, pouco exerceu a profissão de advogado. Mas alcançou a Cátedra, através de concurso público, para titular da cadeira de Estatística, junto à Faculdade de Economia da UFRGS.
Era uma das grandes sumidades do quadro docente. Cultura profunda, inteligência privilegiada, afirmava sem a menor soberba — e era verdade — que por dever de ofício havia lido e estudado “O Capital”, de Marx, em alemão, idioma que dominava com profundidade, não só pela ascendência, mas porque vivera boa parte da sua infância e juventude, com os pais, em Bonn.
Provocado, segredava que a melhor forma do estudante “colar” era sentar-se no meio e não no fundo da aula. No centro da sala o aluno oferece maior dificuldade ao controle do professor, dizia.
Lembrava, hilário, a época em que trabalhara junto aos Correios, no guichê de entrega de cartas, referindo-se à estupidez das pessoas. Certa vez um indivíduo postou-se à sua frente e indagou:
— Tem carta para “mim”?
O professor, que nunca havia visto o homem, respondeu: — Não!
— Mas de que forma o senhor sabe que não há carta para mim, se não me conhece?
— Carta para “Mim”, no momento, não há; se o Senhor se chama “Mim”, pode seguir tranquilo seu caminho que não há correspondência. — respondeu.
Com a resposta recebida o desconhecido buscou entrar pelo minúsculo guichê, na tentativa de agredir Wiltgen, mas foi logo contido pelos demais funcionários.
Em outra ocasião, antes de se formar, Edgar trabalhou na Faculdade de Direito, junto à Secretaria. Certa feita toca o telefone, no horário de expediente. Edgar atende.
— Alô — uma voz do outro lado da linha indaga: — há alguém ai?
— Não, não há!
— Se não há ninguém, com quem falo?
— Com a Justiça, meu caro. — respondeu tranquilamente — Assim como os Deuses descem aos seus templos quando estão vazios, eu venho ao meu, que é a Faculdade de Direito.
— Vai à p… q…, respondeu a voz do outro lado da linha.
E o professor desligou o telefone antes que o homem completasse a frase.
— Mamãe não tem nada com isso. — Sorria…
Durante seis meses, de segunda a sexta-feira, graciosamente, por duas horas, Edgar ministrou aulas particulares de matemática ao Alírio Cássio di Zabanetta Noronha, que pretendia passar no exame de admissão do Colégio de Aplicação.
Resultado: o menino rodou. Ansioso, no Bar da Júlio, Edgar esperava pelo resultado do pupilo.
— Então, meu bom Alírio?
— Rodei, professor!
— Se fosse Cristo — respondeu o mestre — eu diria: preguei no deserto!
Discutia futebol ou existencialismo sartreano com a mesma desenvoltura e conhecimento. Nutria especial desprezo pelos comentaristas de futebol, referindo-se a estes sempre de forma sarcástica, em tom de crítica ao conteúdo bizantino das suas análises. Chamava-os, ironizando, de “filósofos do futebol”. E que o Brasil fora tricampeão do mundo, apesar da imprensa esportiva.
A cerveja preferida do professor era Brahma Extra, que a bebia — por mais calor que estivesse — fora do gelo. Dizia que, bebendo-a gelada, lhe causaria, no dia seguinte, artrite até na dentadura postiça. Paulino possuía outra versão: o professor bebe a cerveja quente, porque assim ninguém tem coragem de filar a bebida.
* * *
Wiltgen possuía um apartamento em Tramandaí, que pouco desfrutava. Certa vez, para um fim de semana, emprestou o apartamento ao Paulino, José Rosito, Zeca, Paulinho Vignoli e Antoninho Dias de Castro. Bem que tentaram levar o professor que, entretanto, negou-se categoricamente.
O grupo chegou a Tramandaí num sábado à tarde, primavera de 63. Depois de acomodados, à noitinha, foram na Taberna do Willy, onde beberam incontáveis cervejas, até alta madrugada. De volta ao apartamento, resolveram preparar o jantar.
De repente Paulino, sem querer, deixou cair um copo no chão, que se quebrou em pedaços, chamando a atenção de todos. Foi o suficiente para que Antoninho jogasse outro copo; José Rosito não se conteve, e pôs ao chão mais quatro ou cinco pratos seguidos por Paulinho Vignoli e Zeca que derrubaram o que havia de louça dentro da prateleira da cozinha: pratos, copos, pires, travessas.
O quebra-quebra se estendeu por todo apartamento e pelos objetos que fossem possíveis de destruição, que se quedaram no chão, em cacos. Quando parecia que tudo havia sido quebrado aparece Paulino dizendo: Aqui tem mais um pratinho…
No dia seguinte, sóbrios e incrédulos avaliaram o vandalismo que haviam praticado. E agora, quem irá dar a notícia ao Professor? — indagaram-se. O consenso foi o sorteio e a “missão” coube ao Paulino e ao José Rosito. Na segunda-feira, fim da tarde, foram ao encontro do Professor no Bar da Júlio para dar a notícia do ocorrido.
O mestre, em silêncio, tudo ouviu. Teceu apenas um comentário, em tom de desprezo, dando por findo o episódio:
— Meu bom Paulino e Rosito, ainda bem que eu não fui com vocês, porque ajudaria a quebrar aquela merda!