Santidade sem dor – José Alberto da Silva

SANTIDADE SEM DOR

A natureza tem dito escancaradamente que o comportamento humano deve se adequar melhor as suas orientações de conduta para nossa sobrevivência sobre a terra.

Na mitologia africana Exu se entende como a representação humana num grau mais elevado que traça e fiscaliza caminhos e formas de convivência proveitosa sobre as relações entre seres vivos, paus e pedras.

Tudo que homem precisa é auscultar esses conselhos evitando que Exu, vez por outra representado por intempéries e hecatombes seja mal compreendido por atropelar, não sendo ouvido, nossa teimosia em agir contra nossos próprios interesses. Se por um lado esta força natural molda e auto regenera as nossas necessidades básicas, por outro lado torna-se destrutivo caso se distorça nossa noção do que nos traga vida e prazer.

SudBeka era um primo de talento na construção civil em que pese ter aprendido a ler e somar debaixo de uma obra. No segundo ano Primário foi expulso de uma Escola antes de ser alfabetizado e nunca mais voltou a um colégio. Menino homem ele fumava, bebia e se governava; meu tio o queria ocupado em algum ofício, no Pão dos Pobres, na Casa Pequeno Jornaleiro, Amigo Germano; circulava na Azenha, arredores da Cabo Rocha, no entorno do Cinema Castelo notadamente nos domingos de manhã de encontros e namoros, quando assistia um programa de auditório do Maurício Sobrinho. No carnaval desfilou em várias tribos carnavalescas na Porto Alegre da década de 60 do Areal da Baronesa, da Santana, da Av. Eduardo. Sua coreografia era mover a cabeça de um lado a outro, de um ombro a outro, em 180 graus ao ritmo do tambor. Devia cansar um desfile inteiro fazendo aquele movimento de cabeça. Os “índios” tomavam e eram movidos a cauim. Se é verdade que cantavam a 4 vozes, impensável nos dias de hoje mesmo para corais sofisticados, o cachaçal grassava forte.

O melhor amigo do meu primo SudBeka era o Alemão Reginal. De condutas parecidas eram a corda e a caçamba. A cada ano desfilavam numa Tribo de Índios diferente tanto que o público em geral nunca sabia em qual Tribo eles iriam desfilar de cada vez: Caetés, Xavantes, Bororós… Esse alemão tocava um enorme surdo que lhe parecia leve. Dizia-se que desfilava incorporado de seu Exu, olhos vazados, descalço, pés ensanguentados, mais dançava sacudindo seu instrumento do que propriamente tocava. Na construção civil, serviço pesado, de risco e encachaçados, morriam ou trabalhavam sem equipamentos de proteção, sem garantias, sem dias ou horários definidos. Tristes almas, desorientados, depressivos.

Morava na Cidade Baixa nesta época, circulando pela Rua da Praia, cinemas Avenida, Capitólio, Garibaldi e arredores, moça bonita, perfumada, estilo “black”, nos cabelos, com volumosa cabeleira crespa. Moças de seu padrão de beleza, boas famílias, casavam-se ate seus 20 anos, ela, porém, era solteira aos 30 e sem namoro fixo. Era sim, solteira e mais alguma coisa. As amizades dela começaram a rarear visto que as casadas tinham outros interesses e as meninas de 20 anos, tinham outros interesses. Surgiram ruídos à boca pequena sobre ela conhecida como Zangona. A desvirginélia tinha consequências e implicava em compromisso para linguarudos, e como se dizia, a filha dos outros não é brinquedo; um pai pode descer de santa elegância mais do que um corno escabelado. O máximo que se poderia dizer dela era:

– Tadinha!

Ninguém acreditava naquela união com festa no salão, véus e grinaldas na Igreja do Santo Antônio. Não faltou quem perguntasse se ele e a Zangona haviam consumado o casório, visto a má fama dela de possuir um ferrão incandescente em suas “partes”. Por curiosidade, como convidado, fui à cerimônia. O padre corria olhos em relances pela Igreja sem encarar as aberrações que constituíam as testemunhas daquele enlace. Contrastavam com anjos no entorno do altar a brincar entre os santos, tocavam flautas, entoavam cantos e voejavam em grupos. O clima, a atmosfera, o colorido diáfano, compensava o sofrimento que era ver entre aqueles frequentadores pessoas bem vestidas, mas com caudas, homens com unhas muito grandes, alguns com cabeças de bode e crianças maldosas em travessuras violentas. Porque não ver alma limpa e pura na assistência, por ter abertos seus canais de mediunidade, a santidade do padre o permitia entender quando Cristo dissera que pessoas melhores não precisavam dele.

– Reginal!

Eu e a Rainha Doce acumulávamos vitamina D sentados na frente de casa quando vimos a passagem de um casal inter-racial, da nossa faixa etária, fantasiados de maduros porém belos. Gritei a euforia que se tem ao rever amigos de infância, reconhece-los e ser reconhecido. Estavam indo na direção da casa dos pais dela recentemente mudados para o Urubatã. Afáveis aceitaram convite para entrarem em nossa casa e após as apresentações fiz questão de arrotar a grandeza de meu casamento feliz. Eu a conhecia pelo apelido de Zangona, para saber que seu nome era Zuva. Lembramo-nos do meu falecido primo SudBeka que morreu com o pescoço virado para o lado de um de seus ombros e lembramos outros que não estão sobre a terra. Conforme falavam da vida deles a partir do casamento que os transformou em pessoas de estudos, esforços, comprometimento comunitário, na espiritualidade das auto superações, com filhos atuando no exterior, aos poucos eu fui encolhendo no sofá que parecia de pedra de tão impenetrável. E eu vivendo de escaramuças e gritarias; de picuinhas, de desavenças com pai e mãe, patrões e desempregado, lembrei vizinhos que eu planejava matar nem que fosse com o olhar de meu pensamento.

Supondo que eu poderia ter feito comentários de um passado, ela pareceu mandar recado sem dor para vários amigos da juventude de quem se sabia não terem feito grande coisa de suas vidas, enquanto eles se realizavam. Envergonhado eu lembrava da má fama de ardida que ela tinha, apelidada de Zangona como a mulher do Zangão, da beberagem dele com seu tambor e dos anjos que só agora lembro ter visto na Igreja no casamento deles, enquanto o pai dela santificado com cara de boi manso cumpliciado com o santo casamenteiro e o Padre de muita fé, triangulavam a feitura do pão da vida para os dois lados daquele compasso.

Nunca mais olharia alguém como – tadinha! Compreendi sem entender lá muito bem que Exus e Pombagiras trabalham para a necessária evolução espiritual e proteção de pessoas usadas como instrumentos de sua paz, como disse o São Francisco do Urubatã. Entidades espirituais que representam os Reflexos de nossas açoes em grande parte praticadas de forma inconsciente.
Tal faixa vibratória semelhante a dos humanos é percebida por padres e mediuns que abram corações e mentes para tais percepções treinadas em despreconceituar a natureza das coisas.

Apressadamente telefonei para meus filhos para dizer-lhes:

– A filha dos outros não é brinquedo.

Passamos a revê-los com frequência e em vários lugares como se antes daquele primeiro encontro estivessem encobertos por nosso canal das percepções até então fechado pela indiferença pelas pessoas em geral. Naquele dia ao saírem recomendaram que observássemos a presença deles na Bateria dos Imperadores do Samba durante o carnaval. Com eles estavam o faceiro Chico Meu Filho, o tamboreiro do Imperador Gregório, o Fofo Antunes, o Kaubi, o Fred, o Jefinho, o Thiago, o Marcus Vinicius, o Renato, o Santana, o Reinaldo e outros. Diziam em coral de 400 vozes ao Exu de todos nós que poderíamos dançar a saúde, a paz e a mutua solidariedade. O casal Reginal e Zuva não deixava de desfilar desde o tempo do Roxo. Na Passarela do Samba os vimos felizes no desfile. Ele batia seu surdo e usava sapatos, afinal não é mais “índio”, né? E ela, sacudindo sua cabeleira enfeitada, tocava caixa de paz concentrada na evolução de seu samba rasgado.

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