Um americano na Praça

Da série “A Praça Júlio de Castilhos e a turma do murinho”

Milwaukee, Wisconsin, EUA, final de 1942: Teresa Larach e George William Wolford se casam. No ano seguinte, George é convocado e se incorpora ao U.S. Army, no posto de oficial, numa força de elite. Por possuir formação universitária foi-lhe assegurado o ingresso na condição de Comissioned Warrant Officer — C.W.O. Seu destino: uma base aliada na cidade de São Luiz, no Maranhão. A missão da sua tropa: “segurar” a marinha nazista que navegava pela costa da América do Sul. É obrigado a deixar a mulher, que se encontrava grávida, e rumar para o Brasil.

No ano seguinte, com a gravidez adiantada, Teresa resolve deixar Milwaukee e retorna à sua pátria, Honduras. Estabelece-se na capital, Tegucigalpa. Dias após a chegada, nasce Carlos Jorge Wolford. Com o filho recém-nascido, saudosa, Tereza decide ir ao encontro do marido e viaja para São Luiz. Ao chegar, depara-se com uma surpresa: não poderia ficar junto ao esposo, William. Por ordem da missão de guerra o comandante da tropa americana não permite a presença de Teresa e da criança sequer próximo à Base.

Sensibilizado, contudo, o comandante interfere e consegue que Teresa e o filho sejam acolhidos num convento católico, em Curitiba, para onde são encaminhados e passam a morar, aguardando o fim da guerra. George, todos os meses, quando de folga, visita a mulher e o filho, cujo crescimento, mesmo com o obstáculo da distância, consegue acompanhar.

Terminada a Guerra, George decide permanecer com a família no Brasil. Escolhe Porto Alegre para seguir a vida. A família Wolford, vem morar no Edifício Moinhos de Vento, na Praça Júlio de Castilhos, número 19. Carlitos contava com pouco mais de dois anos de idade.

Transcorridos alguns meses, Teresa abre um armarinho, que recebe o nome de “La Hondureña”. A loja se instala colada ao Bar da Praça Júlio e vende tecidos, material de costura e bordado, adornos femininos, brinquedos, lãs para tricotar, roupas para crianças, adolescentes e mulheres; logo conquista sua clientela e passa a ser referência no bairro.

Carlitos cresce na Praça Júlio de Castilhos. Faz amigos; constrói laços. Estuda, em regime de semi-internato, no IPA, exceto por um ano, quando é transferido para o Colégio São Jacó, em Novo Hamburgo. A saudade dos colegas, entretanto, o faz voltar para o velho educandário do alto do morro, no bairro Rio Branco. Joga futebol no “campinho” da 24 de Outubro; escala, escondido da mãe, o arco de concreto armado, que havia na entrada da Vila Jardim Cristofel; com os amigos, percorre em brincadeiras diárias o bairro aonde mora, conduzindo sua bicicleta Rudger, presente da tia Victória, que lhe mandara dos Estados Unidos.

Adolescente, faz as suas incursões pelo Moinhos de Vento e pela cidade com uma motocicleta Java. Era um dos poucos jovens, na época, a possuir uma moto. Ao completar dezoito anos ganha de presente da mãe um “Fusca” bordô, ao qual dedica especial cuidado e carinho. (Anos depois, na Alemanha, quando poderia comprar um carro melhor — influência da sua juventude e do seu tempo da Praça Júlio — é com um “Fusquinha” que viaja e conhece toda Europa).

A vida, assim, se apresenta tranquila àquele jovem de classe média. Mas, em 1962, para que não fosse considerado desertor é obrigado a alistar-se no exército americano. Numa tarde de outono daquele ano, apresenta-se no Consulado Americano, em Porto Alegre. Quase dois anos depois, julho de 1964, o exército o chama. Parte para os Estados Unidos, deixando para trás a mãe, agora separada do marido, os amigos, o bairro, a Praça Júlio e Porto Alegre.

Incorporado ao exército é mandado para Fort Gordon, na Geórgia. O soldado Wolford ali aprende noções de eletrônica militar, em tanques, rádios, aviões e navios. O serviço é regular e a vida na caserna parece seguir sem maiores atropelos. No entanto, em maio de 65, inesperadamente, uma ordem superior o designa para Fort Story, em Virgínia Beach.

No mês de julho de 1965 o comando do destacamento de Carlitos recebe nova ordem: o presidente Lyndon B. Johnson, determina que fossem cumprir uma missão na área do Pacífico. O sigilo, contudo, é intransponível. Somente o comandante e o piloto da aeronave sabem o destino daqueles jovens soldados. “Por que essa transferência, brusca, repentina, sem maiores explicações?” — indaga-se Carlitos. “Será que o estigma da guerra, que lhe acompanhava desde o útero materno se fazia novamente presente?” — pensa. Apenas sabe que sua missão era determinação direta, do Presidente. A situação deveria ser séria…

Carlitos embarca com outros duzentos companheiros a bordo de uma “Fortaleza Voadora”. Depois de cinco dias de voo, passando por Oklahoma, São Francisco, Pearl Harbor, Subic Bay (Filipinas), Wake Island, Okinawa, Guam, Mariana Islands, Tóquio, Hong Kong aterrissam, enfim, sob fogo cerrado, numa pista militar, em Saigon, Vietnã do Sul.

Em terra, divididos em pequenos pelotões, para um dos quais Carlitos fora designado, embrenham-se na mata, abrindo fogo em direção a Qui-Nhom, entre Saigon e Da Nang, na costa do Mar da China Meridional. Desde logo Carlitos sente o pavor do conflito. Recebe, ao chegar, os armamentos individuais, briefings de guerra, vacinas, papéis e testamento para os familiares, caso viesse a morrer. A tropa de Carlitos se fixa, de início, em Qui-Nhom. Após, marchando sempre em fogo cruzado, chegam a Nhá-Trang e, finalmente, atingem Cam-Ranh-Bay. Nessa cidade seu esquadrão pôs termo à cobertura de toda a costa vietnamita, no Mar do Sul da China.

Na cidade Cam-Ranh-Bay, em 1965, Carlitos presencia o massivo desembarque das tropas aliadas dos Estados Unidos (Coréia do Sul, Nova Zelândia e Austrália), cuja finalidade é atingir as montanhas do interior do Vietnã, na fronteira do Laos e do Cambodja. Esta missão, aliás, nunca seria atingida, ante o obstáculo da sagaz resistência dos vietcongs. Porém, a luta na costa sul-vietnamita, onde Carlitos e sua tropa se encontram é menos dramática daquela que se desenvolve no interior do Vietnã, junto às plantações de arroz ou na floresta asiática.

A guerra não possui front. Predomina a tática da guerrilha, imprimida pelos vietcongs, em ataques e fugas relâmpagos, quase sempre à noite. Aqueles guerrilheiros, franzinos e desnutridos, armados toscamente, se desdobravam com uma valentia obstinada e agilidade impressionante, ora surgindo a um canto, ora noutro, deslocando-se feitos bichos, em túneis e galerias subterrâneas por eles escavados.

Na edição de outubro de 65, a Revista do Globo noticiava, em meia página, com foto e tudo: “Leitor da RG no Vietname”. E mostrava Carlitos, no meio de um acampamento militar, no Sudeste-Asiático, lendo a revista, mandada pela mãe, para não que perdesse contato íntimo e regular com as coisas de Porto Alegre e do Rio Grande. Em junho de 1966, Carlitos completa doze meses em zona de guerra e retorna para os Estados Unidos. Recebe férias. Neste período vem ao Brasil em visita aos amigos. Volta à América e, reconhecido pelo exército por ter vivido o pavor do Vietnã, é designado para cumprir o período militar restante na Alemanha, no U.S. Army Aviation Corps.

Ao fim e ao cabo de seu compromisso militar o exército americano condecora como herói de guerra a cria da Praça Júlio de Castilhos.

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