Sob os jacarandás
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos…
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas…
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
Mário Quintana – “Obsessão do Mar oceano”
No domingo de finados, para quem fica nesta vazia e silenciosa cidade, não resta alternativa outra que não a de limpar e arranjar os armários e as estantes. Este ritual tem lá suas conotações, além da de deletar lembranças que já não mais têm sua razão de ser. É a depuração dos escaninhos da alma, dos sentimentos e paixões que transpassam o coração.
E das gavetas eles vão surgindo: cartões-postais, agendas de endereços, cartas de uma amada que, numa cinzenta manhã de outono, foi-se embora com um circo, em “ais” de paixão pelo trapezista; esboços de poemas bêbados, escritos em guardanapos sobre as mesas dos botequins; recortes de jornais.
Deste universo de segredos, em que o proibido, por si só, excita e estimula a continuidade dos silêncios, ela brotou, visão suave e antiga, retrato em branco e preto, como eu sempre a tive: imagem.
Leio, um por um, os seus escritos, rendendo-me à cálida embriaguez que as suas palavras me instigavam, extasiando-me ante cada transbordamento de vida e da sutileza como se respondesse a um apelo, algum pedido de socorro às carências dos mal-amados.
Ela me “fez a cabeça”. Eu me permitia embalar ao som de sua voz grave e fêmea. Fiz minha suas idéias. Ensinou-me a defender o que entendia justo. Doou-me o seu divã para que eu liberasse a memória dos meus recalques. Nos meus sonhos eu a despi e a amei. Escrevi poemas para que somente ela entendesse o meu lirismo moleque.
Rosas ao entardecer. Encontros nas primaveras sob os jacarandás recém-floridos e do multicolorido dos livros que tanto amávamos.
Os meus escritos ela guardava, esquecidos em gavetas como coisas tão suas. Depois, culpada, dividia-os com outras amadas que – ela sabia – nunca existiram. Mostrou-me os caminhos. Dizia que vida é resultante das nossas escolhas; viver é ser pleno, estar em permanente estado de paixão e de emergência.
A distância me silencia ante o sentimento irreversível da perda, o que a imagem fugaz que agora revejo apenas confirma. Resta-me o consolo de que ela, mesmo distante, me acaricia e me afoga, me corrompe, me sublima…
A sineta tocou mais uma vez. Os estandes e os livros estão sob os jacarandás da praça agora vazia e inteiramente destituída de qualquer sentido.