A Grande Centauro – Sergio Agra

Sergio Agra

Paz! Qual seria o caminho que me levaria à paz? Passam das cinco horas desta madrugada de intensa neblina. Redobro minha atenção ao volante. Das estradas que levam a Santherminia nenhuma outra tem a força, o encantamento e a magia como a da velha estrada de ferro por onde a ‘Maria Fumaça’ outrora rasgava o verde das campinas, vales e planícies.

Partia-se de Porto Alegre ao entardecer e chegava-se pela manhã já alta do dia seguinte. A cerca de três quilômetros da gare de Santhermínia, quando a composição iniciava uma longa e suave curva para a esquerda, da janela da cabine se vislumbravam por entre a copa das árvores do bosque que ainda hoje circunda a pequena cidade, primeiro o campanário da igreja matriz, na elevação da Rua Sete de Setembro; aos poucos se distinguiam os altos muros e os telhados já sem cor definida dos antigos sobrados no estilo colonial espanhol. A possante águia, esculpida em granito, tal sentinela na cumeeira do solar que fora de meu bisavô preconizava a chegada dos hóspedes do casarão. A resfolegante locomotiva que tracionava o balouçante comboio de vagões se viu mais tarde despojada para ceder lugar aos trens Minuano e Pampeiro, rápidos, confortáveis, destituídos, no entanto, do romantismo e do espírito de aventura que somente aquelas velhas máquinas movidas a carvão incandescente tinham o mágico condão de regalar. Não conheci o Trem Húngaro; a essa época já não viajava com tanta frequência a Santherminia.

Não obstante, a rodovia agora deserta me concede, através do seu silêncio e do negrume de suas retas asfaltadas que parecem não ter fim, o suave sentimento de quietude. A imprescindível serenidade que me fora negada por Pandora para que eu pudesse trabalhar ou estudar.

Pandora sempre foi irrequieta e instável. Ela mudava a mobília e reformava o apartamento no mínimo uma vez ao ano. Era ágil nas argumentações, — “Amo fazer da minha casa uma cambiante constelação”, — era invariavelmente o seu mote. Eu me esforçava para mostrar-lhe a realidade dos fatos, — “O meu saldo bancário está longe de ser infinito como o teu Universo estrelado!” A réplica era seu outro ponto forte, — “Não aprecias os vinhos envelhecidos, e o aroma do fumo de teu cachimbo nas noites frias de inverno?”. Por outro lado, eu lhe revelava o lógico, — “Os meus pequenos prazeres não se comparam aos teus caprichos”. Transigir jamais foi o verbo conjugado por pandora, — “Não, de forma alguma, Aleph! — ela rebatia — Não podemos deixar transparecer aos amigos que ainda somos ‘pouca coisa’. Pelo amor de deus, cresce! Os embates forenses também me ensinaram a força das palavras, — “Não é por esse pensar que se dá o crescimento do ser humano!”. Ela fazia uso da ironia como poucos, — “Deixa de ser tolo! A humanidade é dividida em dois polos: nobreza e criadagem. Escolhe onde vais ficar!”. Eu tentava contemporizar, — “Nem tanto ao mar, tampouco à terra. Quero estar em paz e ser feliz contigo. É o que me basta!”. Pandora era imbatível, — “Felicidade! Ora, Aleph, felicidade é isto também: ambição! Sonhar alto, um sonho que alcance o imprevisível: a ursa maior, as três Marias, a aldebarã, as estrelas todas. A mesmice é mortal, é previsível!”. Eu não conseguia atinar a mínima coerência em suas palavras, — “Estás delirando, pandora, como tu mesma disseste, é um sonho! Não tens os pés no chão!”, Por mais que eu me esforçasse ela insistia em ‘viajar’, — “Não! Eu não estou delirando. Sonhar é nutrir nossas vidas. Muitas vezes me pergunto se nossos sonhos estão mais próximos de quem nós realmente podemos ser ou daquilo que queremos e podemos passar para os outros? A própria história nos mostra isso! — E pandora enumerava, — Cristo morreu na cruz, mas o cristianismo se transformou na maior força espiritual do mundo. Galileu Galilei cedeu diante da inquisição, mas a terra continuou girando ao redor do sol. Anne Frank morreu, mas Israel ressurgiu das cinzas dos tempos!”. A discussão tomava rumos surreais. Era urgente eu dar um basta àquilo, — “Eles não eram apenas sonhadores, Pandora! Tinham um ideal, eram guerreiros, o espírito de luta havia nascido com eles. E a cada ato de luta corresponde um passo rumo à vitória!”. Agora eu transitava em terrenos que não me eram desconhecidos, — “E Dom Quixote? — eu contra argumentava — O impossível sonho!”. Pandora insistia na provocação, — “E tu? Tuas teses e a novela que um dia, dizes, as irá defender e escrever, elas, ainda que sonhos, não são ponderáveis?”. Eu conhecia até onde se estendiam os limites de meus talentos, — “Isto tudo é uma luta ainda a ser travada!”. Pandora então apanhou os livros, as chaves do carro e se dispôs sair dando a impressão de que a conversa havia se encerrado. Eu estava enganado. Fora dela a última palavra, — “Toda a luta é movida por um sonho…”. E bateu a porta atrás de si.

Pandora fora aprovada no concurso para docente do Departamento de Astronomia do Instituto de Física da Universidade Federal. Nomeada, no mês seguinte convidou os novos colegas para um jantar em nossa casa. Exatamente na noite daquele primeiro jantar eu retornava de uma conferência na Faculdade de Direito da Unicamp, em Campinas. O voo atrasara devido a um acidente na pista do Aeroporto de Viracopos. Os pousos e decolagens foram transferidos para o Aeroporto de Congonhas, na cidade de São Paulo. Passavam poucos minutos das dez da noite quando a aeronave pousou no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. Colarinho desfeito, paletó sobre o braço, cabelos desgrenhados, ansioso por um bom banho e degustar um generoso cabernet, eis a surpresa: antes que eu girasse a chave no miolo da fechadura do apartamento um homem alto, de porte elegante, a leve e discreta colônia, abriu a porta, estendeu as mãos fazendo menção de apanhar a pasta e o paletó dizendo, — “Doutor, por favor…”. Pandora havia contratado para servir o jantar nada menos do que um mordomo.

Sou por natureza um homem afetuoso. O mesmo não posso afirmar com relação à Pandora. Nunca, em momento algum, dela partiu de forma espontânea um gesto de verdadeira ternura. Encontrei ao acaso dentro do livro “AGrande Centauro — Esta Desconhecida”, uma folha solta com sua letra graúda e firme, este texto:

“… Porém, a raiva maior é contigo mesmo, por não teres a capacidade de ser menos passional. Ser mais razão, capaz de manipular tuas emoções. Sim, somos a geração dos descartáveis! As perdas há muito deixaram de ser sentidas e as cicatrizes de cada relação fracassada são marcas ainda presentes. Por que insistirmos na pieguice do amor? Dizem que amar é desfrutar com alguém das coisas que este alguém curte. Entretanto, nenhum poeta afirmou que amar é também aniquilar todos os limites da paciência do parceiro. Quantos versos, quantas canções e hinos ao amor para mais tarde descobrir que somos a geração dos descartáveis? Virar a mesa? Afundar o barco? Ir de encontro a todas as ideias até então defendidas? Por que não? Acaso teremos o eterno compromisso de sermos fiéis àquelas que foram nossas primeiras verdades? Um dia, quem sabe, hei de trocar o violino, o piano e a flauta doce pelo som enlouquecido de tambores e cuícas. Hei de por fogo no circo, de espantar para todo o sempre os bruxos, os fantasmas e os duendes que invadiram o meu espaço. Então, hei de me enxergar refletida na face convexa de uma colher de prata como uma outra mulher, uma nova mulher…”.

Do alto da colina diviso as primeiras luzes da cidade ainda adormecida.

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