Colunistas

Ad aeternum

M.

Daqui a algumas horas já se fará amanhecer. Faz frio… Muito frio… Ontem, durante o dia todo, fez um calor fora de época; por isso a chuva torrencial que cai desde o começo da noite. O apartamento – apesar da mobília, das paredes revestidas de molduras e das estantes coloridas de livros – me parece inteiramente despido.

Há um vento gemente que penetra pelas frestas das janelas, se sobrepondo ao bramido do mar. Isto me deprime. Para me aquecer, abro um Chablis. Ligo o rádio numa estação de FM. Vislumbro o antigo e imóvel carrilhão de parede. Cheguei há pouco do cemitério, onde não apenas sepultei meu velho pai, como decidi, numa vala à beira da estrada, idealizar o teu funeral.

“Vai valer a pena
Ter amanhecido.”

O que em ti me atraiu foram o brilho e a simulada ternura que trazias no olhar, hoje mal delineados pelas incursões noturnas e pela absorção de misteriosos rastros de fumaça lançados por exóticos dragões. Ouvias, então, uma peça de Tchaicovsky. Na suavidade dos noturnos e das cantatas, transformei-me num andarilho.

No silêncio das confidências aprendi a te amar. Permiti-me sufocar e castrar em nome de tudo que só te dissesse respeito. Renunciei aos prazeres, aos amigos, enfim. Importava-me, apenas, mergulhar no teu corpo, no teu sexo de fêmea nova e assustada; ser um náufrago na fúria incontida dos teus oceanos; destroços de nau em areias de uma praia deserta, longe de qualquer possibilidade de socorro.

“Ter me rebelado
Ter me debatido
Ter me machucado.”

Pudera eu desbravar teus oceanos tão profundos. Sugá-los com todos os seres que neles habitassem e, aí, explodir, numa outra dimensão, marchetando o Universo de peixes, cavalos-marinhos, sereias e estrelas-do-mar.

“Ter sobrevivido”

Ouço a música que elegi como hino. Bebo o vinho sem qualquer pressa, só, sem tua presença. Como sempre fora. Ergo o cálice e faço um brinde à solene descida de tua morte.

À noite, o cansaço e a frustração de saber sucumbidos os esforços de publicar um pequeno romance me derruíam.  Mesmo assim, eu executava um fantástico solo de violino para uma espectadora fria, distante e impassível, quando poderias ser o calor, o êxtase e a vibração de toda uma platéia.

Ofertei-te Mozart, Chopin, Beethoven, Mendelssohn, Debussy. Preferiste aos enfadonhos sertanejos. Brindei-te com vinhos e champanhas. Curtias pepsi-twist. Presenteei-te com orquídeas e violetas. Bastavam-te as mentiras e o assovio velhaco de beira-de-calçada. Enfeitei-te com rendas e sedas. Compravas chitas ofertadas nos balaios dos camelôs.

Entreguei-me e te amei com as nuanças e as sutilezas de um Eros. Desejavas a trepada de um bacante irado e malcheiroso, após a jornada de cargas pesadas no cais de mentiras que estimulavas.

“Ter virado a mesa
Ter me conhecido
Ter virado o barco”

O ideal teria sido buscar o nosso denominador comum: comer uma lasanha, beber um chope gelado, calçar um par de tênis, vestir jeans, ouvir Chico, Nascimento, Caetano, Elis, Bethânia, Simone. Ser, não um violino tenso, mas a flauta doce que sublimasse todas as frustrações, que aniquilasse todas as distâncias entre este instrumento solitário e uma platéia já não mais tão fria e impassível, e executasse, não uma sinfonia; simplesmente uma canção.

O vinho me inebria e seduz… és fascinação…

Ouço o bater da chuva contra a vidraça. A borrasca foi das coisas mais incômodas no teu enterro. Anseio, apenas, que ela permita que o tempo cimente e vede todas as possíveis fendas do teu túmulo.

“Ter me socorrido.”

Recordo os momentos em que fomos mais do que cúmplices. Cruzamos oceanos, escalamos montanhas, sentimos no rosto a brisa suave de um entardecer. Jogamos moedas nas fontes e formulamos pedidos. Sonhamos e fizemos amor em espumantes banheiras e sobre leitos de penas de cisne num outono em Zurique.

“Começar de novo
E contar comigo.”

Não me dei conta de que abrira a terceira garrafa de vinho. Amanhã devo estar sóbrio para concluir nosso inventário e dele tentar, quem sabe, arrolar um único bem que sobreviva a nós mesmos.

“Vai valer a pena
Ter amanhecido
Sem as tuas garras
Sempre tão seguras
Sem o teu fantasma
Sem tua moldura
Sem tuas escoras
Sem o teu domínio
Sem tuas esporas
Sem o teu fascínio”

Nos últimos tempos, a música que ouvias era outra, em dissonância com tudo o que sonháramos. Trazes o corpo e a alma envenenados. Num ato falho(?), chamaste por um nome, que não o meu.

Busquei, nas promessas e nas velas consumidas, nos tarôs e nos búzios de mães-de-santo ladinas, o sonho que já acabara. Lágrimas vertidas ente os violinos, fagotes, harpas, flautas, violoncelos, oboés, cítaras, trompas, pianos, que explodiam numa sinfonia desenfreada, sem nexo, sem partitura: o prenúncio do apocalipse.

Antes de partir, te convidei para jantar. Pedimos vinho, o que nos descontraiu um pouco. Contemplamo-nos e, sem que se fizesse necessário dizer, compreendemos que estávamos diante do irremediável.

“Começar de novo
E contar comigo.”

Continuarei trabalhando. E o romance, finalmente, estará, o que sempre duvidaste, no papel. Assim, não terei medo de não estar bem e só. Hei de impedir que os meus bruxos se apoderem do meu espaço ainda transparente e saudável, que o escurecer me escureça. Vou me deitar na meia-luz do quarto imaginando minha última realidade: um dia vou morrer! E não terei nenhum remorso do bem não feito, do amor não dado. Meus sonhos não se perderam, eis que nunca o foram.

Percebo as primeiras luzes do dia. Vou até a cozinha e preparo um café, como se tivesse dormido a noite inteira.

A manhã é de quinta-feira, 28 de agosto de…

“Vai valer a pena
Já ter te esquecido
Começar de novo…”

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