As aulas do professor Maria

Cursei o primeiro ano Clássico no Instituto Porto Alegre, o IPA. Dentre as disciplinas administradas, havia a Zoologia, e o professor era um homem de nome pomposo: Antônio Maria Ornelles Salgado, que nós chamávamos carinhosamente de professor Maria.

Conhecia com profundidade o conteúdo que lecionava. Com ele aprendi que a Zoologia é a parte da Biologia que estuda os animais sob todos os aspectos e nos dá, ao menos, os princípios básicos do estudo da vida. Da ameba ao homo sapiens. O professor era excelente; o aluno era quem, na verdade, não colaborava.

Numa de suas aulas, o mestre contou a seguinte história: “Um amigo, estancieiro excêntrico, comprou de um circo que pela cidade passava, um filhote de onça pintada que sequer havia sido desmamado. Batizou-o de ‘Sansão’  e  cuidou com carinho do animal que crescia, meio livre, imiscuido entre os cachorros, porcos, gado e cavalos da propriedade, em pacífica (e aparente) coexistência. Era tratado pela peonada como se fosse o mascote da estância, alimentado com mamadeira de leite de cabra, enquanto filhote;  adulto, passou a ser nutrido com carne de ovelha, que devorava à farta. Durante o dia ficava solto, em roda da casa; à noite era recolhido a uma espécie de jaula, ao lado da torre da caixa  d´água. Quando o estancieiro, após o almoço, na hora da sesta, descansava no alprende, deitado na rede, ao seu lado também adormecia ‘Sansão’. Certa vez, a peonada surpreendeu ‘Sansão’ devorando uma ovelha qu eele recém havia abatido (e o felino pouco antes alimentara-se com generosa porção de carne). ‘Sansão’ quando notou a chegada dos empregados pô-se em fuga, desprezando a carcaça, indo abrigar-se junto ao seu dono e protetor. ‘Olha que este bicho sentiu o gosto do abate, do sangue a jorrar; matou para devorar a primeira ovelha; logo virão outras; é da sua natureza e está ficando perigoso’ – dissera o professor, alertando o amigo para que se desfizesse do animal. Numa tarde, o estancieiro acordou da sua sesta com a onça a lamber-lhe a mão que pendia caída. A sensação até que lhe era aprazível. De súbito, o fazendeiro se depara com um quadro apavorante: ‘Sansão’ estava com os olhos vítreos, transformando as feições, pronto para estraçalhar o braço do seu dono com a forte mandíbula: ‘a onça está sentido o cheiro de sangue’ – pensou. E, de pronto, com a outra mão  puxou da guaiaca o revólver que sempre trazia consigo e, sem piedade, desferiu um tiro certeiro entre os olhos do felino que, instantaneamente, quedou-se morto. ‘É, meus caros – dizia-nos o professor –, há muita semelhança entre o comportamento animal e aquele que os homens chamam de ‘convívio social’. A persecussão do dinheiro, por exemplo, é terrível; quando o homem sente o seu faro é que nem a fera aspirando plasma e, para satisfazer a ganância, desconhece até mesmo quem lhe dá abrigo”.

Nas aulas do professor Maria havia sempre uma lição de vida e, ainda que subliminar – às vezes explícitas –, eram enriquecidas  com profundo juízo crítico da nossa desprezível condição humana e suas  incoerências.

Lembrei do professor Maria e suas histórias, porque ontem passei em frente ao prédio do IPA, que continua de pé, belo e majestoso, “sobre o monte milenar” – como diz o seu hino – lá no alto do bairro Rio Branco, mas sobretudo porque fiz, no silêncio de um minuto, um preito à memória do menino assassinado em Capão da Canoa pela força da mandíbula de uma besta, cruza de pittbull e rotweiller.

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