Colunistas

Cabeção

Da série “A Praça Júlio de Castilhos e a turma do murinho”

Luiz Carlos Mariense Moura e Cunha, chamado pelos amigos de Cabeção, frequentou a Praça Júlio fazendo parte da turma do início dos anos 50. Residia perto da Caixa D’Água, na Rua Barão de Santo Ângelo, 318, onde hoje é um condomínio de classe média. Com poucos meses de vida perdeu a mãe e foi adotado pelo avô, General João Antônio de Moura e Cunha, e duas tias-avós. O pai, também militar, por força do ofício, fora obrigado a mudar-se para São Paulo.

O avô João Antônio dedicava especial carinho ao neto, mas não transigia na educação austera, típica de quem possuía formação da caserna. Mas Cabeção, de temperamento buliçoso e caçoísta, era de quase impossível controle. Voz aprazível, conversa envolvente e amizade leal, circulava, junto com seu grande amigo Cláudio Gomes, o Sarará, com a mesma camaradagem entre a turma da Praça Júlio e da Praça Maurício Cardoso, a qual viu nascer e ser construída.

Certa vez, quando passava pela parada do bonde da Praça Júlio, conduzindo a camioneta do avô, não se conteve ao enxergar o amigo Peludo aguardando o bonde Auxiliadora, em direção ao Centro: Cabeção parou o carro alguns metros adiante, a buzinar de forma insistente chamando o parceiro com gestos para que se apressasse. Peludo vendo que uma carona surgia oportuna correu em direção ao amigo.

— Vais ao Centro? — indagou Cabeção a Peludo, quando este se aproximou da janela do carro, pelo lado do carona.

— Sim, vou. — e, preparando-se para entrar no carro, foi contido.

 — Mas eu não vou! — replicou Cabeção, acelerando o carro e deixando o amigo no meio da rua, pasmo e envergonhado a ter de voltar à parada, enquanto a camioneta sumia na avenida.

* * *

Cabeção era freguês habitual do Bar da Júlio e do Bar Ranchinho, um quase ao lado do outro, separados apenas pela “La Hondureña”, loja da Dona Tereza.

Mas era no “Ranchinho” que Cabeção possuía crédito que lhe garantia o chope, quando a mesada lhe faltava. Aos poucos, a conta foi tomando vulto e o credor Alberto, dono do bar, ficando impaciente com o devedor. A cobrança era certa, bastava Cabeção entrar no bar e lá vinha Alberto irrequieto:

“Hoje nós acertamos, Cabeção?”.

“Não — respondia o devedor —, mas semana que vem é certo”.

Num domingo, final da tarde, bar repleto, aparece Cabeção e, dirigindo-se ao Alberto, que mal conseguia dar conta dos fregueses, propôs:

— Alberto, hoje nós vamos acertar a despesa; faz o cálculo!

Alberto, avaro, abandonou o que fazia, e foi apurar a conta, antes que Cabeção mudasse de ideia. Demorou um bom quarto de hora e, enfim, chegou à soma:

— Cabeção, tu deves mil e doze!

– Então, Alberto, hoje eu pago doze e os mil em outra hora…

* * *

O General João Antônio, além de possuir formação militar rígida, era abstêmio e pouco indulgente com as artimanhas do neto. Idade avançada, para andar, apoiava-se numa bengala. Certa vez, Cabeção chegou em casa já madrugada alta e, surpreso, encontrou o avô na sala já desperto.

Ao notar que o neto andava com dificuldade, esforçando-se para manter o equilíbrio, indagou:

— O que há consigo para caminhar deste modo?

— Vô — respondeu Cabeção enrolando a fala, entre um soluço e outro —, venho de um churrasco e acho que a carne não me desceu bem — respondeu tentando dissimular.

— Venha cá — ordenou o avô —, que eu quero sentir o seu hálito.

Cabeção resignado obedeceu e, junto ao avô, bafejou a cerveja que havia sorvido no “churrasco”.

Ao sentir o cheiro do álcool, o General não se conteve e, com a bengala erguida, indignado, buscou atingir o neto vociferando:

– É cachaça, porco!

A bengala passou de soslaio, por pouco não acertando o neto. A indignação do avô durou algum tempo; a “ressaca”, porém, curada no dia seguinte.  

* * *

Cabeção e Edgar Motta, amigos de infância e colegas do IPA, prestaram serviço militar juntos, no QG da 3º Região, na Rua da Praia, nos idos de 1954 ou 55. Cabeção indolente, certa vez resistiu à ordem do sargento, resultando preso no fim de semana.
Encarcerado numa cela do quartel, sábado à tarde, quem fazia a guarda do cárcere era justamente o amigo e soldado Edgar.
— Motta — propôs Cabeção de dentro da cela, sabendo que o amigo possuía as chaves da cadeia, penduradas ao cinto —, abre a porta. Eu vou correndo ao Prado, faço uma acumulada e volto em seguida. É coisa rápida, ninguém vai ficar sabendo…

A princípio Motta manteve-se intransigente:

— Não!

Cabeção insistiu. Motta, por fim, acabou por ceder e o amigo saiu feito passarinho, livre rumo ao Prado dos Moinhos de Vento.
O soldado Edgar Motta, naquela tarde de sábado, passou a vigiar uma cadeia sem preso, mas compenetrado na sua condição de carcereiro, missão a qual o comando lhe havia confiado.

A certa altura, porém, surge o oficial do dia. Motta estremeceu, sentindo um frio percorrer a barriga. Agora estou perdido… — pensou atordoado. Tomando à frente, dirigiu-se ao oficial:

— Tenente, preciso lhe mostrar algo — puxando o militar a um canto tirando-o da órbita da cela vazia. — Olha esta parede e teto — prosseguiu — não precisa de uma pintura?

E o militar sugestionado, concordou:

— É, realmente, vamos providenciar para essa semana a pintura. No mais, tudo calmo?

— Tudo tranquilo, tenente. — respondeu Motta, gélido de medo, mas vendo que o militar tomava o rumo da saída sem perceber a cela vazia.

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