Colunistas

Cai o pano – Jorge Vignoli

Ao trazer à relembrança aquela época tem-se a sensação de que os fatos ocorreram ontem, ou anteontem. No entanto, se vão mais de quarenta anos! Se, por um lado, muitos desses personagens mantêm até hoje permanente convívio, também é verdade que alguns desapareceram levados pelo destino. Outros se foram para sempre.

Por onde andará Fredes, ele que era presença obrigatória e diária na roda? No início dos anos 70, na companhia da noiva, aventurou-se no Nordeste. Não deu certo. Retornou a Porto Alegre. Iniciou um negócio de compra e venda de automóveis. Casou. O Alírio, empertigado dentro de um terno comprado a duras prestações, foi seu padrinho de casamento, num sábado de fevereiro de 1976.

O Barbosinha, aos poucos, foi se distanciando do convívio dos amigos até que, por fim, desapareceu, sem deixar qualquer rasto. Esconde-te bem, velho Barbosa, pois Dom Jayme até hoje teima em te encontrar!

E Negrão — na verdade Jorge Alberto Rodrigues — que caminhos há de ter seguido aquele grande parceiro, mas péssimo caçador de aves?

Certa feita, Harley Dullius o encontrou, na frente do Bar Chão de Estrelas, já amanhecendo, cochilando dentro de um táxi, com o qual — disse — ganhava a vida. Estava ali, àquela hora, à espera de passageiro. Despertado, não escondeu a alegria de rever o companheiro, recebendo-o de forma afetuosa e comovida. Trazia na testa a cicatriz que jamais lhe abandonou, após uma ida funesta à Vila Bom Jesus, obra de um pato esquivo e de um motorista atrapalhado. Indagou por todos. Havia casado; sustentava mulher e dois filhos. Asseverou que iria procurar o pessoal e participar das confraternizações; anotou telefones; mas só prometeu… Um ou outro da turma, depois, bem que tentou encontrá-lo no “ponto” indicado por Harley. Tudo, porém, foi em vão. Ninguém mais da turma soube a partir dali…

Para os amigos da Praça Júlio, Negrão desapareceu ao volante do seu “fusquinha” laranja, tragado, quem sabe? pelo turbilhão da cidade. Ou, seguindo os conselhos do tio, Lupicínio, descobriu algum lugar bem longe de Porto Alegre, “onde a falsidade não vigora…”.

Guto foi o primeiro da turma a casar-se, com apenas 19 anos! Nas reuniões do grupo, anos depois, comentava que a filha adolescente arrumara um namorado. “Então, eu quis conhecê-lo. E apareceu — continuou — um cabeludo de 17 ou 18 anos. Eu estava me vendo no rapaz. Foi aí que ele me disse: “Olha, seu Guto, as minhas intenções com a sua filha são as melhores possíveis. Gosto da Alessandra como se fosse uma irmã!”.

Guto também foi um dos primeiros a iniciar trabalhos com computação em Porto Alegre, cuja atividade mantém até hoje.

Cláudio Brandt formou-se arquiteto. Possuindo passaporte alemão, privilégio por ser filho de germânico, foi morar em Berlim, na companhia de Fernando e Fabrício, filhos do primeiro casamento. Fez a viagem de volta do velho pai. É sócio de um escritório de arquitetura, na Alemanha, e de lá, certamente, nunca mais voltará. Aos amigos, quando visitado, é afável e receptivo; põe à disposição a casa e faz questão de mostrar os lugares pitorescos da Alemanha, transformando-se em um autêntico representante da amizade e companheirismo, aos tempos da Praça Júlio. Queixa-se de não ter conservado seu “fusquinha” azul, modelo 1962, como relíquia, com o qual um dia subiu à calçada da Rua 24 de Outubro, na frente do açougue Santa Lúcia, fugindo de alguém que pretendia surrá-lo; ou quando com o “carrinho” escapuliu, incólume, às pedradas do Cara-Vermelha.

Beto Vitola leva a vida como todos gostariam de tê-la: mulheres novas, vinhos velhos, boas temporadas no Rio, Paris, Monte Carlo e Punta del Este, onde busca — sem sucesso — desbaratar a fortuna herdada.

Harley e Werner Dullius são empresários e hão de construir o maior loteamento que Porto Alegre jamais imaginou possuir. O tempo dirá.

Artur Poester, depois de manter um estúdio fotográfico voltado à propaganda, construiu um belo veleiro e prepara-se para dar a sua segunda volta ao mundo, a bordo do seu “Paisano”.

Osmar Ferreira de Souza, após a queda do governo Allende, foi para a França, exilado. Trabalhou muitos anos em Paris. Lá nasceu sua filha, Juliana. Trabalhou também na Alemanha e Suécia. Voltou ao Brasil em 82, após a anistia. Ajudou, então, a cuidar dos negócios do pai, “no Alegrete”. Seus pendores para as questões humanas, no entanto, o levaram a cursar filosofia, na USP, tornando-se, por fim, mestre e doutor. Casado pela segunda vez é avô de duas netas. É professor de francês e traduz textos deste idioma para o português para várias editoras de São Paulo.

Carlitos está aposentado. Mora em Curitiba. Pai de dois filhos, Alex, nascido em Los Angeles, e Oscar em Curitiba; é avô de Thomas Daniel Wolford. Uma vez por ano vem a Porto Alegre. Da última vez — contou — ficou por bom tempo a contemplar os arredores da Praça Júlio, sentado no murinho de pedra que ainda existe, na frente da antiga loja da sua mãe. E, como um estranho ao cenário, observava as pessoas que por ali passavam, buscando-as nos seus tempos de criança e adolescente. Não encontrou nenhum amigo ou conhecido, daqueles velhos dias.

Tudo havia mudado…

Impossível não lembrar da colegial do Bom Conselho, o encanto do grupo. Hoje terá, inexoravelmente, cinquenta e três ou cinquenta e quatro anos. Casou? É feliz? Quais as vicissitude que o destino lhe reservou? Quem sabe leia um dia este livro e se lembre de uma turma de rapazes que ficava num murinho de pedra, fazendo alvoroço, quase na frente da sua casa, a segui-la com olhares sempre que passava por eles; quem sabe, nem lembre…

Certa vez, a turma se reuniu numa churrascaria para confraternizar. O local era ao ar livre, mesas entre as árvores, e a conversa corria animada com o grupo quase completo. De repente, à distância, aparece Juliano, cujo convite havia sido feito por telefone. Vinha trôpego, arrastando os pés e apoiando-se numa bengala. A cena, tanto quanto inesperada, foi tocante. Juliano tinha pouco mais de trinta anos. A ele o grupo acorreu. A impressão que transmitiu, a princípio, foi de que havia sofrido algum acidente. Não, na verdade, era vítima de um processo de degeneração, onde as articulações e os músculos atrofiavam-se. O primeiro sintoma havia aparecido uns seis meses antes, e progredira rapidamente. Fora submetido a inúmeros exames. “Me viraram do avesso — disse — mas não encontram a causa. Têm dias que até me sinto melhor, mais disposto; depois retrocede”. Mantinha, a despeito de tudo, a esperança de que ficaria curado. Com o passar do tempo, contudo, seu estado se agravou. Buscou auxílio médico em São Paulo, sem êxito, porém. Aos poucos deixou o trabalho; acabou aposentando-se. O guerreiro que um dia inaugurou, urinando, o viaduto da Praça do Portão e que, feito uma flecha, saiu correndo em fuga alucinada do bar do Dom Jayme, deixando a conta eternamente pendurada, estava capitulando pelo capricho ingrato da natureza. Na metade dos anos 90 a enfermidade, por fim, o venceu e sem que os médicos jamais, conclusivamente, soubessem a causa da sua moléstia.

Tantos anos se passaram do fim dos anos 60, começo de 70! Quantos projetos na pedra gélida do murinho da Praça Júlio ou na roda de chope no bar do Dom Jayme foram acalentados! Mas, sem que se perceba, a voragem implacável do tempo a todos comanda. Aquela época da Praça Júlio é indelével, especialmente quando, em algum lugar, o grupo de amigos se encontra para confraternizar, lembrar, rir muito e, também, embargar a voz e derramar uma incontida lágrima…

Impossível, nessas ocasiões, deixar de lembrar Chaplin:

Vidas que se acabam a sorrir

Luzes que se apagam nada mais

É sonhar em vão, tentar ao outro iludir

Se o que se foi, prá nós não voltará jamais

Para que chorar o que passou

Lamentar perdidas ilusões

Se o ideal que sempre nos acalentou

renascerá em outros corações…

*A crônica derradeira do livro“A Praça Júlio de Castilhos e a Turma do Murinho”,de Jorge Alberto Carriconde Vignoli, sob o heterônimode Alírio Cássio diZabanetta Noronha

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