Capítulo XX de Navegar É Preciso – Sergio Agra

Sergio Agra

O OCASO DA ÚLTIMA DAS ESTRELAS

 Capítulo XX de “Navegar É Preciso…”

 “A solidão desola-me. A companhia oprime-me.

A presença de outra pessoa desencaminha-me os pensamentos.”

Fernando Pessoa,

 Passava da meia-noite quando finalmente cheguei a casa. O apartamento jazia no silêncio sepulcral como se nele ninguém habitasse. Para dar-lhe vida acendi todas as luzes dos lustres e dos abajures.   Meu primeiro olhar quando na sala de estar foi na direção do aparador de ferro fundido. Sobre o tampo de vidro se destacava a até então inviolada caixa artesanal que Maria Pia me presenteara na Noite do Natal em Cortina D’Ampezzo. Quebrando o juramento que eu lhe fizera, o de somente abri-la no dia de meus cinquenta anos, rompi o lacre e vislumbrei o livro ‘O Jogo das Contas de Vidro’, do escritor alemão Hermann Hesse, uma utopia situada no Século XXIII que descreve uma comunidade mítica em que uma elite intelectual condensa todo o conhecimento disponível da matemática, música, ciência e arte num jogo elaboradamente codificado que define os valores da sociedade.

À vista disso decidi que o iria ler no ano 4.001.

Do home bar apanhei um cálice e a garrafa de um generoso Cabernet Sauvignon de boa safra. Abri-a. Enquanto o vinho respirava depositei sobre o prato circular do aparelho de som um long play de vinil com baladas e músicas românticas gravadas por Elvis Presley. Firmando a haste entre os dedos médio, indicador e polegar efetuei um leve movimento circular do cálice para sentir o aroma do vinho. Sorvi o primeiro gole.

Acomodei-me na frente da escrivaninha e destaquei algumas folhas do bloco de cartas para escrever à Maria Pia. Os primeiros versos da melodia em surdina se irradiaram pela sala. Enquanto eu redigia, meus pensamentos se fixaram nos versos da balada que Elvis entoava.

“E agora o fim está próximo.

Assim eu enfrento a cortina final.

Minha amiga, eu direi isto claramente,

Eu declararei meu caso do qual eu estou certo.

Eu vivi uma vida que está cheia,

Eu viajei cada e toda estrada,

E mais, muito mais que isto,

Eu fiz do meu jeito.”

“Maria Pia.

Daqui a poucas horas virá o amanhecer. Faz frio… Muito frio… Ontem, durante o dia todo, fez um inusitado calor fora de época; por isso a chuva torrencial que cai desde o começo desta noite. O apartamento me parece inteiramente despido, apesar da mobília, das estantes repletas de livros, das paredes revestidas com as molduras dos quadros das bandeirinhas das festas de São João, de Alfredo Volpi, e dos ‘ex-votos’, de Antonio Maya. — Sabias? —, meu pai tinha como hobby colecionar quadros com temática regional e ligada à religiosidade popular do Nordeste. Dou-me conta de que até então eu nunca tivera disposição para colecionar algo. Agora terei tempo. Mas há de ser algo inusitado, tipo fetiche, o que achas?

Há um vento gemente que penetra pelas frestas das janelas se sobrepondo ao ruído dos automóveis que viajam nas ruas. Tudo isso me deprime. Para atenuar as tristezas abri um tinto e pus um disco com os blues e baladas do Elvis. Percebo parado, preso, pregado à parede o pêndulo do centenário relógio que pertencera a meu avô. Deve estar sem corda sei lá há quanto tempo.

Cheguei faz pouco do Jardim da Paz onde visitei a sepultura de meus pais. No retorno, numa vala à beira da estrada, antes de viajar no tempo, idealizei o teu funeral.

“Arrependimentos, eu tive um pouco,

Mas, novamente, muito poucos demais para mencionar,

Fiz o que tinha de fazer,

E fui até o fim, sem exceção.

Planejei cada curso projetado,

Cada passo cuidadoso do percurso.

Oh, e mais, muito mais que isso,

Eu fiz do meu jeito.”

 O que em ti me atraiu foi o brilho de teus olhos verdes e a dissimulada ternura que neles trazias, hoje mal delineados pelas incursões noturnas e pelas emanações de estranha e adocicada fumaça que te estende o abissal ‘dragão’. Lembras, costumávamos ouvir Tchaikovsky. Ante a harmoniosa suavidade dos noturnos e dos prelúdios transformei-me num andarilho. No silêncio das confidências aprendi a te amar. Permiti-me anular em nome de tudo que só te dissesse respeito. Renunciei ao convívio com os colegas e amigos da Universidade nas rodas de grogue ou de chope nos finais das tardes das sextas-feiras nos bistrôs de Montmartre. Eu cobiçava tão somente mergulhar no teu corpo, no teu sexo de fêmea nova e assustada; ser um náufrago na fúria incontida dos teus oceanos; ser o sobrevivente acolhido pelas areias de uma ilha deserta, longe de qualquer possibilidade de socorro. Pudera desbravar teus mares tão profundos, sugá-los com todos os seres que neles habitassem e explodir numa outra dimensão, marchetando o universo de peixes, cavalos-marinhos, sereias e estrelas-do-mar.

Ouço a balada que agora elegi como o meu hino de libertação. Bebo o vinho sem qualquer pressa. Só. Sem tua presença, como se transformara nossa rotina nos últimos meses em que ainda estávamos juntos. Ergo o cálice e faço um brinde à solene descida de tua morte.

“Sim, houve vezes, eu sei que você sabe,

Que abocanhei mais do que podia mastigar.

Mas, apesar de tudo, quando havia dúvida,

Enfrentei tudo e me mantive no alto.

Eu engoli e cuspi,

E fiz do meu jeito.

À noite o cansaço e a frustração de saber sucumbidos os esforços de publicar um pequeno romance me derruíam.  Mesmo assim eu executava um fantástico solo de violino para uma espectadora fria, distante e impassível, quando poderias ser o calor, o êxtase e a vibração de toda uma plateia. Ofertei-te Mozart, Chopin, Beethoven, Mendelssohn, Debussy. Preferiste o ruído ensurdecedor dos bas-fonds do  Bois de Boulogne onde rolava e consumia-se o ecstasy e a ‘farinha mágica’. Brindei-te com champanhas. Curtias a grappa barata das tabernas. Presenteei-te com orquídeas e violetas. Encantam-te as mentiras e o velhaco assovio do conquistador de beira-de-calçada. Enfeitei-te com rendas e sedas. Barganhava-as por chitas ofertadas nas barraquinhas dos camelôs que iniciavam a proliferar e vulgarizar os Champs-Elyseés. Entreguei-me e te amei com as nuanças e as sutilezas de um Eros. Elegeste a trepada de um bacante irado e malcheiroso após a jornada nos cais das mentiras que estimulavas.

O ideal teria sido encontrar o denominador comum, saborear uma lasanha, degustar um chope dourado e espumoso, calçar os tênis, vestir calças jeans, escutar Modugno, Chico, Endrigo, Nascimento, Pepino di Capri, Elis, Caterina Caselli, Caetano, Gigliola Cinqurri, Bethania, Ornella Vanoni. Ser, não um violino tenso, mas a flauta doce que expurgasse todas as frustrações; a melodia que eliminasse a distância entre aquele instrumento solitário e uma plateia já não mais tão empedernida e surda, e executasse não uma sinfonia, simplesmente uma canção.

O vinho me inebria e seduz… eras fascinação…

Ouço o bater da chuva contra a vidraça. A borrasca fora das coisas mais incômodas no teu funeral. Desejo apenas que este aguaceiro não impeça que o tempo cimente e vede todas as possíveis fendas do teu túmulo.

Recordo os momentos em que fomos mais do que cúmplices. Cruzamos oceanos, escalamos montanhas, sentimos no rosto a brisa suave de um entardecer sobre a Pont des Arts. Jogamos moedas nas fontes romanas e formulamos pedidos. Fizemos amor em espumantes banheiras e sobre a maciez dos leitos de penas de cisne num outono em Zurique.

 “Eu amei, eu ri e chorei.

Tive minhas falhas, minha parte de derrotas

E agora as lágrimas cessaram.

E acho tudo tão incrível,

Pensar que fiz tudo isso.

E talvez eu diga, não de uma maneira tímida,

Oh, não, eu não,

Eu fiz do meu jeito.”

Nos últimos tempos a música que ouvias era outra, em dissonância com tudo o que sonhávamos. Trazes agora o corpo e a alma envenenados. Num ato falho chamaste por um nome que não o meu. Busquei nas promessas e nas velas consumidas, nos tarôs e nos búzios de ladinas mães-de-santo o sonho que há muito já acabara.

“O que é um homem, o que ele tem?

Se não for a si mesmo, então ele não tem

Que dizer as palavras que sente,

E não as palavras de alguém que se ajoelha.

O registro mostra que eu suportei os golpes

E fiz do meu jeito.

O registro mostra que tomei fôlego

E fiz do meu jeito.

O registro mostra que tomei fôlego

E fiz do meu jeito.”

Antes de eu voltar para o Brasil te convidei para jantarmos. Sugeri um vinho, o que nos descontraiu um pouco. Contemplamo-nos e sem que se fizesse necessário dizer entendêramos que estávamos diante do irremediável.

Continuarei trabalhando — é claro! — agora no Instituto de Letras da Pontifícia Universidade Católica, em Porto Alegre, e na Universidade Federal de Santa Maria, uma cidade distante 250 km da Capital. E o romance que sempre duvidaste possível algum dia há de estar sobre o papel. Assim, não terei medo de não estar bem e só. Não hei de permitir que os meus fantasmas se apoderem do espaço transparente e saudável que ainda me pertence e que as sombras me obscureçam. Vou me deitar na meia-luz do quarto imaginando minha última realidade: um dia vou morrer! E não terei nenhum remorso do bem não feito, do amor não dado. Meus sonhos ainda não se perderam.

Percebo as primeiras luzes do dia. Vou até a cozinha e preparo um café, como se tivesse dormido a noite inteira, Maria do Carmo…

Maria do Carmo??? Maria… Maria…

Maria do Carmo… Maria do Carmo…”.

 Manhã de sábado, 21 de maio…

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