Capítulo XXII de “Navegar É Preciso…” – Sergio Agra

Sergio Agra

A CIDADE MORTA

 Capítulo XXII de “Navegar É Preciso…”

 “…não há saudades mais dolorosas

do que as das coisas que nunca foram.”

Fernando Pessoa

“Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca… para que nada mais fique aprisionado no porão…”.

Sim, foram exatamente estas palavras que eu havia dito a mim mesmo pouco antes da inesperada visita de Caterina, jogando por terra os votos que então eu fizera. A cada ida de Caterina ao meu apartamento ela me presenteava com mais uma inédita peça à minha nova coleção…

Na invernal madrugada de um domingo, alguns meses após o nosso reencontro, o insistente tilintar do telefone despertou-me de um sono profundo. Era Caterina, — “Estou na Ala de Emergência do Hospital de Clínicas… — Caterina trazia na voz o peso dos sofreres de um universo inteiro —Rigoberto sofreu um AVC Hemorrágico… Sobreviveu, mas… —Eu apenas ouvia a respiração ofegante de Caterina por longos e intermonáveis minutos —… as sequelas serão irreversíveis. Ele ficará tolhido dos movimentos faciais e da mobilidade natural dos membros superiores…”. Mesmo tomado pela hesitação decidi perguntar, — “Queres que eu vá até aí?”. O pranto de Caterina dificultava o que ela tentava me dizer, — “ Sim, Aleph, é o qie mais preciso agora: teu ombro, teu abraço, ouvir tua voz… mas as circunstâncias se mostram adversas…”. — “Também vejo assim… — concordei — …e isso significa que…”. —“Que não devemos mais nos encontrar…”.  Do outro lado da linha fez-se um silêncio interminável até que o tempo da ligação do telefone público se esgotase…

Entreguei-me com empenho aos misteres de minhas aulas e palestras nas universidades sem, no entanto, me descuidar de reunir novas peças à minha nova e excêntrica coleção.

Seis meses após nossa última conversa ao telefone, Caterina, como é de seu feitio, interrompeu-me a correção das provas do semestre. Ao abrir a porta do apartamento, antes de qualquer reação minha, estendeu-me a pequena caixa envolta por papel celofane vermelho arrematado por um laço de fita de seda amarela, explicando, — “Uma peça a mais para tua coleção!”.

Rigoberto, ante as consequentes sequelas que o AVC lhe provocara, agradecido por ter Caterina concordado com a permanência do marido na casa do casal, entendeu, não obstante, ser injusto que a mulher renunciasse à vida que ela planejara se ambos efetivamente se divorciassem. Depreendeu que Caterina deveria retomar nosso relacionamento. Minha perplexidade foi tamanha e Caterina apressou-se em aclarar, “Rigoberto sabia que mantínhamos um caso…”.

Duas semanas antes do Natal, sem qualquer explicação, Caterina ligou-me e em um tom de voz despido de qualquer emoção sentenciou, “Estou saindo de tua vida! Em definitivo!”.

Ao entrar na biblioteca percebi que a porta do armário, onde em três das gavetas eu guardava as peças de minha coleção, se encontrava destrancada…

“Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca… para que nada mais fique aprisionado no porão…”. Desta vez minha decisão foi categórica.

Na parede dos fundos da garagem, ocupando todo o pé direito, vislumbro o imenso armário de mogno com inúmeras prateleiras. No alto, o objeto de minha busca: a caixa que Bárbara havia trazido do apartamento da cidade para nossa casa de praia contendo cartas, fotografias e meu time de futebol de mesa. O que me interessava eram mesmo as cartas que eu até então ignorava. Levei-a para a sala de estar.

Ligo o aparelho de som e escuto a ária de uma ópera que até aquele momento eu desconhecia. Sem me preocupar em espanar o pó que se acumulara com o tempo, deposito a embalagem sobre a mesa de centro. Minha atenção, de imediato, é desviada por um envelope selado que se grudara na base da caixa.

Escuto as primeiras e melancólicas entonações, num timbre aveludado, rico e de grande amplidão no registro agudo, da soprano Renée Fleming, na Ária ‘Glück das Mirverblieb’, da Ópera Die Tote Stadt, de Erich Wolfgang Korngold.

Tudo ali se adéqua ao meu estado de espírito: o céu carregado de nuvens, o brilho bruxuleante da pequena luminária, o pungente andamento da música, o som do silêncio daquela praia deserta e desolada. Confinada, a cidade morta!

Abro o envelope. No seu interior, sem qualquer bilhete, por mínimo que fosse, vislumbro somente o retrato de uma jovem mulher em sua beleza natural, sem quaisquer extravagâncias, trazendo seguro por uma das mãos um menino. Às costas de ambos despontava a Torre de Belém, o

símbolo identitário de Lisboa. Uma estranheza desperta minha atenção: na foto, desbotada a ponto de quase não se distinguir a imagem em face da umidade e da maresia que tomaram conta daquelas prateleiras, estava Maria Clara. Ao seu lado o menino, contando entre seis e sete anos de idade. Maria Clara carregava melancolia no olhar. O guri, alheio aos sentimentos que varavam a alma da mulher, trazia o semblante fagueiro, levemente malicioso, os cabelos ocultos por um colorido gorro de esquiador. No verso da fotografia, a letra a demonstrar a forte personalidade de sua dona apenas informava: Lisboa, dezembro de 1977

Não pude conter o amargo e triste sorriso à lembrança das palavras que numa remota e enluarada madrugada em que o silêncio somente era quebrado pelo ruído dos carris dos tanques do Exército sobre os paralelepípedos, clandestinos, acomodados na cabine de um trem rumo a Santana do Livramento, porta do exílio de Maria do Carmo, ela me dissera: — “Algum dia hei de sentir meu corpo e minha alma libertos, navegando sobre as águas do Tejo…”

Foi neste exato momento que pude então tudo entender…

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