COCKTAIL DE L’ADIEU – Sergio Agra

Sergio Agra

COCKTAIL DE L’ADIEU

Capítulo XXV Da Série As Crônicas de Aleph

Nenhum dos amigos em comum soube informar o destino, menos ainda o quê Aleph fizera durante quase dois meses após o inusitado encontro que tivéramos naquela manhã de domingo em que ele me relatou o orgíaco festim no Espaço SB.

Assim, não foi sem estranheza que recebi após esse tempo todo um comunicado da Clínica EncarnaciónBlaya de que Aleph ali se encontrava internado por livre e espontânea vontade há exatos quarenta dias. O prontuário de internação informava meu nome e telefone para contato se tal se fizesse necessário. Este desejo por ele manifestado ocorrera na manhã de uma sexta-feira.

Fui encontra-lo no jardim da clínica acomodado numa longa e acolchoada cadeira de piscina. Ao me avistar fechou o livro, não sem antes colocar o marcador na página que lia, e o depositou numa mesinha auxiliar à sua direita. Pude entrever o título da obra e o nome do autor: “Uma Rua de Roma”, dePatrick Modiano. Não pude controlar o riso. Tratava-se de um instigante romance que investiga a questão da memória pela figura de um detetive particular amnésico, que parte em busca dos labirintos do seu passado.

Aleph contrariando à lógica do que ele próprio havia prometido após nossa última conversa, retornara no dia seguinte ao Espaço SB.

Lembrei-o do pacto que ele mesmo se impusera. Ele contra-argumentou meu comentário justificando-se, — “Eu não podia acreditar que tanto tempo houvesse passado… A culpa não foi minha, escuta só!”.

E iniciou a mais estrambólica das narrativas.

“Por conspirações que o destino tem o condão de fazer prosperar, fora exatamente na Banca 40 do Mercado Público que eu encontrei um alvoroçado, impaciente e frenético Sidy. Ao me avistar, arrancou-me pelos braços da mesa sobre a qual abandonei a mal tocada Bomba Royal. Malgrado meu esforço, ele sequer escutava meus protestos. Eu estava angustiado pelos últimos acontecimentos ocorridos nos dias anteriores.

De fato, também me encontrava desgostoso com o aspecto desleixado de meus cabelos. E somente Sidy, nosso amigo de longa data, com sua tesoura de ouro, shampoos e condicionadores encomendados diretamente a Mestre Ravengaard—o último guardião dos segredos e da magia das aromáticas ervas cultivadas nos campos de Grasse, nos Alpes Marítimos, na Costa Azul francesa —, seria a solução para o que então me afligia.

Quanto ao meu visual, Sidy garantiu-me caprichado restauro. Rumamos ao Space SB.

Uma vez ali, deixou-me aos cuidados das assistentes, pois, como ele já havia anunciado no trajeto, precisava se engalanar para o Cocktail de l’Adieu que Mari del C. — recordas, aquela mulher de rara e delicada beleza que evocava a mais divina das deusas gregas? —, minha colega de aula no Curso Clássico, iria oferecer.

As duas assistentes estavam em meio às incumbências determinadas por Sidy quando este, disparando escada abaixo, instigou a mim e as auxiliares a lhe acompanhar. Sidy uma vez mais ignorou meus veementes protestos acerca de minha bizarra aparêncianaquele momento: uma das laterais de meu couro cabeludo exibia trilhas depiladas que lembravam símbolos celtas, enquanto na outra sobreviviam os pelos do corte que tanto me aborrecia. Constrangido, eu adivinhava o inevitável vexame e o mico que haveria de pagar. Sidy afiançou-me que quem menos se importaria seria a própria Mari del C.

O local do insólito evento — o amplo salão de festas de um luxuoso triples na Avenida Nilo Peçanha — mostrava-se suave e difusamente iluminado por luzes indiretas. A Sonata para Violino e Piano “A Primavera” op. 24, nº 5, 1º movimento, de Beethoven combinava com as conversas em surdina dos mais de duzentos convivas reunidos em pequenos grupos. Junto à parede principal daquele espaço, sob a luz de dois projetores a ela direcionados, sobre um riquíssimo catafalco totalmente coberto por rubro veludo em cujas extremidades se divisavam franjas de ouro, repousava uma surpreendentemente pálida, frágil, quebrantável, no entanto soberana e divinamente bela Mari del C. Ela trajava um longo peplo estruturado em fina gaze azul radioso que lhe envolvia até os pés desnudos. À sua cabeceira duas amigas com ela entabulavam sussurrante conversação.

Naquele instante, treze garçons a rigor estenderam aos presentes, dispostas em delicadas bandejas de prata, taças de Moet&Chandon Dom Perignon Charles & Diana 1961. A Sonata subitamente foi interrompida e Mari del C. sussurrou:

— A lasanté!

Na parede oposta ao estrado a imensa tela de um home theatre exibiu Sinatra em magistral interpretação de “My Way”. Os convidados, atentos à canção e aos brindes com o raríssimo champanhe sequer perceberam que Mari del C. com a destra havia acionado um pequeno botão vermelho ao lado de seu corpo, desligando os aparelhos ocultos sob o catafalco, de onde duas cânulas, através de orifícios artificiais concebidos cirurgicamente entre a escápula, alcançavam seus pulmões acometidos por processo carcinogênico com evolução para metástase.

Atônito e sem nada entender, voltei-me àquela que me parecera ser uma das assistentes de Sidy e pergunto por ele. A mulher me encarou como se fora eu um extraterrestre e, entre espantada e divertida, me esclareceu que o cabeleireiro há quatro anos fora assassinado por um michê….

Voltei a mirar Mari del C. Ela parecia estar envolta em plácidos sonhos.

Como se houvesse deixado os labirintos de um pesadelo, despertei sobre a mesa da Banca 40 à frente de uma taça que há pouco ostentava uma artística Bomba Royal e agora exibia imersos sob a mistura derretida do sorvete napolitano e da nata nacos de banana, maçã, mamão e laranja…”.

*Coquetel de Despedida

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