Como tudo começou

Exatamente (por que?) naquela sombria tarde de sexta-feira, o Professor da cadeira de Conto do Curso de Graduação Lato Sensu em Literatura Brasileira da Universidade Federal solicitou a Aleph que lesse para a classe o conto que ele solicitara na aula anterior.

O aluno, um tanto hesitante, apanhou as duas ou três folhas que estavam à sua frente e sem demonstrar o nervosismo que lhe assomara, dirigiu-se em passos lentos e comedidos até o estrado. Mirou um por um os colegas que, em silêncio, aguardavam a leitura.

Aconteceu tudo em 1968:  os estudantes se revoltaram e armaram barricadas em paris, não para tomar o poder, mas para dele debochar. Outra ordem caduca começou a ser contestada no leste europeu com a “primavera de praga”, que os tanques do império soviético sufocaram. Por toda a parte a autoridade viu-se desafiada: em casa, na escola, na cama, no trabalho, nos palácios. Esse mesmo ímpeto varreu a américa, onde a geração nascida no pós-guerra impunha seus valores. Minha forma de contestar, não exatamente ao regime de exceção que estendia, cada vez mais, seus tentáculos sobre as cabeças pensantes brasileiras, e sim os padrões e o status familiar, foi transformar-me em ator de teatro.

Minha primeira peça e personagem: “a fossa”, onde beto, dublê de traficante de drogas e gigolô, transitava entre o submundo do crime e o amor paternal à sua pequena sobrinha.

Ao final de uma apresentação em santana do livramento, rumamos, david camargo, Luiz pinto, o cenógrafo, e eu, para um quiosque na praça internacional onde, entre um tango e uma milonga, sorvia-se norteña, a gelada e dourada cerveja uruguaia.
Por sua condição de bem mais velho do elenco, a personagem do padre era interpretada por david. Este, abstêmio, no segundo copo já dizia pachouchadas. Com extremo esforço, em meio à madrugada, pelas desertas e silenciosas ruas de Livramento, arrastávamos, na direção do hotel, o ébrio e álacre david.

Em frente as cerradas portas de uma confeitaria, jaziam dois engradados de garrafas de leite. Acomodei o emborrachado “padre” no cordão da calçada e, silenciosamente, imaginando amenizar os efeitos do álcool, retirei uma garrafa de litro do engrado.
Gesto outro sequer pude intentar, não sem antes ouvir o silvo de um apito e o facho de uma lanterna iluminando-me o rosto. Era o guarda noturno que largara sobre o passeio sua bicicleta e aproximava-se a passos largos, já empunhando na destra o cassetete.

Dirigi ao vigilante um assustado e tremente boa noite “seu” guardinha”! Banoche cosa niguna! O que tu pensa que tá fazendo? Suando por todos os poros ainda tive voz para me defender, Nada, não “seu” guarda, nada não! Nesse meio tempo, por ter ouvido o apito do colega, outro guarda chegava em sua bicicleta, Qual foi o entrevero, ortega? O que se chamava ortega, sem mover os olhos e o facho de luz, foi incisivo, Este piá tá afanando uns litro de leite! Aí, senti que minha situação não era em nada tranquilizadora, O senhor está enganado, só quero socorrer o “padre”! O cassetete tremia a poucos milímetros do meu rosto quando o policial desafiou, De que padre tu me hablas? Apontei na direção do david, Aquele, o que está sentado na calçada… Guri atochador, tô vendo padre como vejo marciano acá em Santana! Reafirmei com o que me restava de voz, É aquele ali, o david é o “padre”! O farto bigode do guardinha tremia tanto quanto ele próprio de indignação, Vai vê o tal padre esqueceu a batina lá na zona de rivera! O outro, que até então se mantivera calado, atiçou, Vâmo dá umas cacetada nesse fedelho e fazê o padre rezá uma missa intera!

Quanto tempo durou aquela cena, digna de um teatro do absurdo, até hoje desconheço. Até convencer a dupla de guardinhas que éramos atores de um grupo teatral que se apresentara na cidade, para festejar o sucesso bebêramos um pouco além da conta e que era minha pretensão deixar uma nota de cruzeiro novo para ressarcir o leite, o pileque do david, àquelas alturas já havia evaporado e os primeiros albores do amanhecer já tingiam o céu.

Na roda de chope com os amigos, em Porto Alegre, narrei-lhes a madrugada tenebrosa que vivera em Santana do Livramento. A risada foi geral e a sentença uníssona, Cara, que imaginação mais fértil! Além de ator, devias, mesmo, era ser contador de histórias! Por que não “viras” um escritor?

E as gargalhadas irromperam por toda a mesa.

Após as palmas calorosas dos colegas e do assentimento do Professor, Aleph depositou as duas ou três folhas sobre os apontamentos do mestre.

Todas elas em branco.

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