Contando estrelas – Sergio Agra

Sergio Agra

Esperam-me pouco mais de quatrocentos quilômetros de estrada que separam Porto Alegre de Santherminia.

Viajo só, sem a companhia de Pandora. Carrego uma garrafa térmica de café bem forte.

Sintonizo o dial do rádio do carro na emissora com programas de músicas bregas e recados piegas às apaixonadas ouvintes.

Por não fazerem o meu gênero e gosto não corro o risco de adormecer ao volante “embalado” por aquelas canções.

Dirijo até o posto de gasolina e peço ao atendente que complete o tanque. O frentista demonstra surpresa com minha presença àquela hora tardia, — “Vai viajar, Doutor Aleph?”. Agradeço-lhe o interesse, — “Sim, sigo pros lados de Alegrete.

Coçando o cocuruto como se mentalmente estivesse fazendo um cálculo o bombeiro quis saber, — “É muito chão, hein? O Doutor cuide que esta madrugada está com muita cerração, vou dar uma lavada no para-brisa”. Retribuí-lhe a gentileza, — “Bastante! Quero chegar ao amanhecer”. Após estender-lhe a gorjeta inicio a viagem.

Mesmo não sendo àquela hora uma estrada de muito movimento, na neblina os faróis dos poucos automóveis que trafegam em sentido contrário parecem ganhar maior intensidade. Alguns trechos são de longas e entediantes retas.

Teimosamente, Pandora é o foco de meus pensamentos.

Fora um sentimento fulminante disso eu tive certeza minha paixão por Pandora era um estado de permanente disponibilidade sem medida de tempo espaço ou circunstâncias incondicional para mim o exercício do dar-me e na minha entrega o sentido maior de existir antes de a conhecer eu pisava fundo, usava capa e espadim era um siderado vislumbrava jardins de margaridas e girassóis eu transformava a HarleyDavidson de 500 cilindradas num Pégaso viajava com o farol sempre em luz alta buzinava em locais proibidos desconhecia os freios e os sinais fechados hoje compreendo o porquê do gesto ríspido e a palavra mais dura de Pandora restava-me juntar os cacos dos bibelôs e dos adornos de cristal que ela lançava contra as paredes na hora da raiva e ao fim me implorava pra ficar eu a amparava e não permitia que os nossos sonhos e fantasias fossem invadidos e aniquilados minha paixão era cega eram trocas de afetos de segredos obsequioso eu a ouvia calava-a outras vezes Pandora resgatava algumas lembranças no abraço infinito eu intensificava a capacidade de saber perdoar-lhe eu era a redoma que a acolhia no instante em que os seus sonhos se frustrassem telefonava-lhe a qualquer hora e por qualquer razão perguntando onde havia se escondido Doutor Freud o gato de estimação e se naquela noite iríamos a algum restaurante mas no fundo era para ouvir-lhe a voz e diminuir minhas saudades descobri que o amor era para mim o mais pleno exercício da renúncia fui capaz de acompanhá-la nas cadeiras do Gigante da Beira-Rio quando sou azul de paixão pelo Imortal Tricolor assisti a um Buñuel em branco-e-preto rodado no México e jurei que havia adorado enfrentei as filas intermináveis do supermercado em plena tarde de sábado de ensolarada primavera para simplesmente comprar meia dúzia de prendedores de roupa e achar tudo engraçado amar é vencer juntos amargar abraçados a eventual derrota e partir pra outra é esquecer o cansaço beber um espumante e rolar a dívida assumida adiar-e-adiar-e-adiar a viagem sonhada-sonhada-sonhada é a espera de um pelo outro numa esquina sob o semáforo é andar à toa até o último bar Esperança são as madrugadas indormidas desejando compreender os por quês das atitudes incompreensíveis amar é pulsão alquimiamagia amar é tudo é a própria vida enfim ainda querendo ser…

 Um ano após nosso primeiro encontro estávamos casados. À noite, enquanto me debruçava sobre os tratados dos mestres do Direito, Pandora subia ao terraço do edifício; instalava o telescópio e se esquecia das horas, viajando pelos sistemas, descobrindo uma ou outra constelação que eu, leigo, digno de lástima, não as distinguia sequer pelo nome.

Em pijamas, tremendo de frio, eu escalava as escadas até a área descoberta e a arrancava daquele enlevo; afinal, a temperatura havia baixado e ela corria o risco de contrair um forte resfriado.

Tal curiosa criança curtindo o seu mais recente brinquedo ela desconversava, — “Espera só um instante. Lá estão as Três Marias, da Constelação de Órion! Veja como são belas!”.

Pandora vislumbrava as estrelas desde o terraço de um edifício em Porto Alegre. Ela sabia que a luz dessas estrelas percorrera bilhões de quilômetros antes de se encontrar com o seu olhar naquela noite de inverno de mil novecentos e oitenta.

A luz dessas estrelas precisou de tempo para essa longa viagem. A cada pulsação no corpo de Pandora ela avançava centena de milhares de quilômetros através da noite cósmica. Olhar para o Espaço Sideral significa retroceder no tempo.

Não vemos o Universo como ele é, mas como foi há muito tempo. Olhar para o Espaço Sideral significa viajar no tempo.

Pandora sabia disso. Tudo o que um astrofísico pode fazer é interpretar o passado. Naquela noite estrelada de inverno ela vislumbrara bilhões de anos no passado.

De certa forma estava vendo o caminho de volta para Casa, de volta para sua origem cósmica.

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