Cristianismo e Capitalismo
CRISTIANISMO E CAPITALISMO
Minha última coluna sobre o cristianismo resultou em comentários muito interessantes. Um dos comentários tinha o seguinte teor: “Aos cristãos durante a Idade Média, quando o cristianismo se expandiu e acabou com as velhas religiões mitológicas, o lucro por suas atividades profissionais era considerado pecado da usura e punido severamente”.
De outro comentário, não postado no site mas que recebi por e-mail, pergunta o leitor: “de que forma então a Igreja Católica acumulou tamanha riqueza sendo o lucro considerado pecado da usura?”. Interessante pergunta que podemos tentar contextualizar aqui para explicar o desenvolvimento do maior sistema político-econômico da humanidade ao longo de sua história e sua relação com o cristianismo.
IDADE MÉDIA
Quando o Império Romano do Ocidente caiu a única instituição poderosa e universal era a Igreja. Sob ela agora recaiam todas as obrigações de um Estado. Ela soube, como nenhuma outra instituição humana até então, tirar proveito disso. Todo o mundo europeu estava sob controle da Igreja, espiritual, político e também economicamente. Economicamente porque boa parte das atividades comerciais de então estavam, de uma forma ou outra, ligadas a Igreja. Não havia nenhuma possibilidade de viver nesse mundo sem uma ligação com a Igreja.
A fuga das populações urbanas para fortalezas no campo (o próprio conceito de cidade foi alterado), a falta de um Estado organizado e, principalmente, a própria condição de tensão imposta pela Igreja. Segundo Arnold Hauser a Igreja produziu uma “tendência apocalíptica de escapismo do mundo e anseio da morte; mantém o espírito dos homens num estado constante de excitação religiosa”.
No entanto, a virada do milênio trouxe o crescimento da cidade e, fator embrionário do capitalismo ainda sob a “capa” do feudalismo, o comércio internacional. Agora havia as Hansas, ligas comerciais entre as principais cidades europeias. Na mesma época as Cruzadas proporcionaram a redescoberta de novos mercados. Ao longo dos séculos seguintes se verá uma transferência de poder: de produtores protegidos pelas Guildas, ganhando a vida moderadamente e de forma quase que uniforme, para um pequeno grupo de mercadores e comerciantes, ligados a príncipes ou outros soberanos, com transações em larga escala.
DEFINIÇÃO DE USURA
O fortalecimento de mercadores e comerciantes criou uma nova classe social: a burguesia. A burguesia passou então a apoiar a formação de Estados unificados e fortes. Para isso o Estado precisava tornar-se independente da Igreja. A Igreja tentou cortar o problema na raiz: o Concílio de Latrão, em 1515, definiu que existe usura “quando se procura adquirir um lucro pelo uso de uma coisa que de per si não é produtiva”. Segundo W. Endermann “o dinheiro é de si improdutivo. É por natureza absolutamente incapaz de produzir frutos. Aquele que, portanto, exige dele frutos, peca não só contra o preceito positivo do direito divino e humano, mas também contra a natureza das coisas”. Ou seja, o comércio e o acumulo de dinheiro não era bem visto pela Igreja, salvo é claro, o acumulado por ela mesma.
Vejam que interessante: Giovanni Medici, o Papa Leão X, o mesmo que excomungou Martin Luther e presidiu o Concílio de Latrão que determinou as regras da usura, era filho de Lorenzo Medici, o Magnífico. Os Médici eram a família mais influente da Itália e uma das maiores da Europa Renascentista. Com o dinheiro da família, Giovanni se tornou cardeal aos 13 anos e Papa aos 38!
A REFORMA
Para poder concluir o Vaticano Leão X estava se utilizando da venda de indulgências, ou seja da venda da salvação das almas no purgatório em troca de …dinheiro! Qualquer um podia comprar a salvação do bisavô, se fosse o caso, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro. Esta foi um das principais causas das 95 teses de Luther – mesmo que anos antes ele mesmo tivesse comprado, para um parente, uma indulgência. Obviamente que a burguesia aderiu em massa a Reforma. Com ela se quebrava o poder da Igreja e ascendia liberdade de comércio.
Max Weber, e seu Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus (A ética protestante e o espírito do capitalismo), foi quem mais contribui para se difundir a tese de que o capitalismo se disseminara do protestantismo do século XVI. Weber vê principalmente em Jean Chauvin, ou João Calvino, o principal regulador desta “nova filosofia”.
O jurista francês Jean Chauvin foi responsável pela criação de um movimento “reformador” dentro do próprio movimento da Reforma. Seus seguidores são conhecidos como calvinistas ou reformados. É um ramo protestante pouco conhecido no Brasil, mas significativo na Alemanha, França, Suíça, Holanda, EUA e outros. Calvin influenciou outros pensadores e reformadores e sua grande “contribuição” ao movimento foi a elaboração da “Doutrina da Predestinação”, segundo o qual o indivíduo nasce, ou não, predestinado a salvação.
Muito se tem discutido a respeito e os escritos de Calvin vistos sob nova perspectiva revelam que a “doutrina” não surgiu nos primeiros anos da Reforma, mas amadureceu principalmente durante os anos em Genebra onde a taxa de juros foi discutida entre os reformadores como uma questão religiosa. Sob a ótica calvinista o homem é o reflexo da vontade divina e a sua situação financeira é a confirmação, ou não, da salvação eterna.
Era o que faltava para impulsionar a burguesia emergente. Enquanto a Igreja Católica influenciava o Estado e adquiria para si própria, por “vontade divina”, os bens materiais que a enriqueceram, o calvinismo veio dizer a uma parcela cada vez maior da população que o seu sucesso financeiro era uma resposta de que Deus estava presente em sua vida. Não é sem razão que os países com rápido desenvolvimento comercial no século seguinte ao da Reforma são países com forte influência protestante, principalmente os calvinistas: no século XVII e XVIII, a Holanda Puritana e a Inglaterra Anglicana; e hoje o maior exemplo desse sistema, os Estados Unidos da América do Norte.
JUDAÍSMO
A ideia de que o judaísmo, e não o protestantismo, havia desenvolvido o sistema que depois se denominaria capitalismo, também tem seus adeptos. Até o grande poeta inglês William Shakeaspeare em seu The Merchant of Venice (O Mercador de Veneza), escrito na última década do século XVI, retratou o judeu Shylock como um agiota. De fato muitos reis europeus tomaram dinheiro emprestado de “cristão novos” (judeus convertidos; forçadamente diga-se de passagem), entre eles os reis de Portugal.
Os primeiros investidores do Brasil eram cristãos novos. Mas a comunidade judaica era uma minoria em meio a grande cristandade européia. Por mais que sua contribuição fosse, e de fato foi, ativa, jamais foi significativa a ponto de moldar os rumos da economia, até porque a perseguição a eles foi intensa.
Por outro lado os Fugger, as minas de alumínio de Tolfa e o arsenal de Veneza, as principais empresas européias do século XVI, eram católicas. E os maiores banqueiros (genoveses, florentinos e espanhóis) também eram católicos. E na mesma época em que o mercantilismo europeu crescia vertiginosamente os judeus eram expulsos dos lugares onde por muito tempo haviam sido financiadores de empreendimentos exploratórios. A Espanha de Fernando e Isabel, talvez seja o maior exemplo.
INFORMATIVO DIOCESANO
Leio agora no “Informativo Diocesano – Órgão de informação da Diocese de Osório” (Ano 4 n.°11 jul/ago/2009) que a prática da Indulgência está de volta, nesse “Ano Sacerdotal”.
Diz o jornal: “O que é uma indulgência? D. Jaime [o bispo responde] – No Direito Canônico encontramos a seguinte definição: ‘Indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa, que o fiel, devidamente disposto e em certas e determinadas condições, alcança por meio da Igreja, a qual, como dispensadora da redenção, distribuí e aplica, com autoridade, o tesouro das satisfações de Cisto e dos Santos (992)’. Portanto, o objeto das indulgências não é o perdão dos pecados, mas remissão da pena temporal devida pelos pecados que já foram perdoados quanto à culpa. Do perdão dos pecados se ocupa o sacramento da confissão”.
E continua D. Jaime: “Normalmente se distinguem dois tipos de indulgências: a plenária e a parcial. Conforme as palavras já deixam entrever, se diz plenária quando a remissão da culpa é total e, parcial, quando a remissão não é plena”. Não é preciso escrever mais. Parece-me óbvio aqui que estamos revendo Leão X, modificando-se apenas o Vaticano pela Catedral de Osório.
E AGORA?
O cristianismo transformou-se no mais lucrativo comércio capitalista. Temos exemplos de corrupção em instituições de ensino, como no caso da ULBRA, em redes de TV, como no caso da Record, e agora a volta de práticas há muito ultrapassadas, como a de indulgências. Ouço, ou leio, como argumento dos defensores dessas exploradoras de almas respostas como “isso é coisa do homem não de Deus ou de Cristo”.
Sim dos homens, assim como é dos homens a criação de quase todos os dogmas, teologias de predestinação, indulgências e outros absurdos cometidos em nome de Deus. No que a humanidade transformou a doutrina de amor e caridade de Cristo? Seria bom que parássemos e refletíssemos que tipo de cristianismo estamos vivendo e praticando.