E, no entanto, tem “artista” que é cego!

Na escuridão do quarto, divisei os dígitos luminosos do relógio: três e meia da madrugada de uma quinta-feira invernal. De nada adiantaria permanecer no aconchego dos cobertores; havia perdido, definitivamente, o sono. Pensei, num primeiro momento, que fosse, como invariavelmente às madrugadas, Brighid, a me acariciar com o toque de seu longo e sedoso manto.

Não, não era a Deusa Celta do fogo da inspiração, da poesia e da adivinhação. Eu estava, sim, submerso em dúvidas e incertezas “hamletianas”: Seguir (ou não!), dali para frente, em meu apaixonante e, ao mesmo tempo, tresloucado vício do escrever – tardiamente, talvez, contraído? Essa dependência “química”, emocional e afetiva que, na grande maioria das vezes, a ausência de uma honesta autocrítica impede de se reconhecer a carência do mínimo talento.

Acudiram-me à lembrança imagens de poetas, de escritores, dos gênios da prosa e do verso. Eles sim – diferentes entre si –, de comum, o inigualável talento: Rimbaud, Noel Rosa, Garcia Márquez e Saramago.

Arthur Rimbaud, a partir dos 15 anos, conquistara inúmeros prêmios na poesia. Aos 17 escreve sua obra prima (em prosa)  Une saison en enfer (Uma Estação no Inferno), considerada pioneira nas instâncias do simbolismo moderno. Escreveu, ainda, uma descrição sobre sua vida de drôle de ménage (farsa doméstica) com Verlaine, seu frère pitoyable (lamentável irmão) e a vierge folle (virgem louca) por quem ele era um l'époux infernal (noivo infernal). Após os 19 anos, até sua morte, aos 37 anos, nada maisproduziu. Transformou-se em traficante de armas na África.

Noel Rosa – comparável a ele somente Chico Buarque de Holanda –, aos 17 anos, compôs o primeiro de 257 magistrais poemas musicais. Somente a morte prematura (27 anos) estancou a torrente de genialidade do Poeta da Vila.

Gabriel Garcia Márquez publicou seu primeiro romance, O Enterro do Diabo, aos 28 anos. Exatamente aos 40, com o “realismo mágico” de Cem Anos de Solidão, sua obra prima, este colombiano, jornalista e ensaísta cinematográfico, alcançou o reconhecimento universal. A partir daí, a fonte inesgotável de sua criatividade não mais sossegou, até o ano de 2009, quando anunciou sua aposentadoria.

José Saramago, funcionário público, jornalista, crítico literário e tradutor, escreveu seu primeiro romance aos 25 anos de idade. No entanto, o ápice desse escritor português se deu após os 60 anos, principalmente a partir de História do Cerco de Lisboa e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.A partir daí, até sua morte em 18 de junho de 2010, sua obra se caracterizou por ascendente talento.

Dos quatro expoentes visitados, diferentes entre si, repito, Rimbaud, após Uma Estação no Inferno, jamais voltaria a escrever. Noel Rosa, durante sua curta existência, galgou, um por um, os degraus do primor de sua poesia.

Garcia Márquez, desde seu primeiro livro, mostrou, em seu conjunto, uma obra estável, sempre de alto nível. Saramago somente aos 60 anos de idade – ele é um ser único num universo de bilhões – iniciou a caminhada rumo ao Prêmio Nobel de Literatura. Esses quatro – ainda que heterogêneos entre si – legaram uma única conclusão: o talento é tesouro inato!

O talento da literatura longe está de ser um cosmético barato. A obra literária, sobretudo no gênero do poema, não se “empurra”, não se inflige, não se “vende” de porta em porta como uma “Avon chama!” da vida. A poesia, com mais razão, ainda, não se presta para vaso sanitário dos estúpidos.

Pensara, ao vislumbrar outra vez os dígitos do relógio – 5 horas –, agora, sim, volto para o calor dos cobertores, para o perfume e a maciez dos lençóis, eis que o bardo inglês e sua criatura me interrogam:

– Ser ou não ser? Eis a tua questão!

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