Episódio V de As Crônicas de Aleph

Sergio Agra

LUMINISCÊNCIAS

Episódio V de As Crônicas de Aleph

“A memória, afinal é a sensação do passado…

e toda sensação é uma ilusão.”

Fernando Pessoa.

Episódio V de As Crônicas de Aleph

 Eu chegara à conclusão ser impossível não voltar a cabeça e contemplar o que naquele momento definitivo deixava para trás: a morada onde eu havia nascido.

Era uma antiga construção que o bancário, ‘Seu’ Vóty, meu avô, adquirira juntamente com a mulher e quatro filhos, dentre estes aquela que viria ser minha mãe. Na fachada principal localizava-se a porta, dividida verticalmente em duas metades, flanqueada por uma ampla janela de quatro ombreiras, notadamente elevada em relação ao plano do passeio. Em seguida a essas meias-portas se distinguiam os quatro degraus de relativa altura entre si. Galgado o escalão que se nivelava ao pé direito do restante da moradia iniciava-se o longo corredor pelo qual se tinha acesso a sete cômodos, dentre dormitórios, banheiro, sala de jantar e copa, ladeados pelo pátio recoberto por lajotas que lembravam um tabuleiro de xadrez por onde finalmente se alcançava a cozinha e a despensa — esta última transfigurada em dependência para as duas serviçais, mãe e filha.

Fora dos janelões dessa casa, seguro pelas mãos ainda firmes de minha avó, que gritei o nome do Caudilho — jocosamente apelidado por seus adversários políticos de ‘O pai dos pobres e a mãe dos ricos’ — que desfilava a bordo do flamante Rolls Royce conversível preto, ante a excessiva proteção do vigilante “Anjo Negro”, seu homem de confiança. A comitiva seguia rumo ao Palácio, a poucos quarteirões dali. O Caudilho ao ouvir meu clamor infantil ordenou ao motorista que detivesse a marcha do automóvel e, com o inefável sorriso que lhe era marca pessoal, acenou-me ante o olhar de estupefação do menino que eu era.

Fora desta janela que me persignei à visão da imagem do Salvador nas procissões de Corpus Christi. Debruçado naquele mesmo peitoril este moleque não poucas vezes rira dos exagerados desvelos das freiras, ao final do turno de aulas do liceu religioso, ante o bulício das álacres alunas trajando o severo uniforme colegial — a saia pregueada, de comprimento abaixo dos joelhos, na cor azul-marinho, e a alva camisa de cambraia coroada pelo vistoso laçarote de fita de seda na mesma combinação de cor com a saia.

No lar avoengo eu fora a essência dos afetos dos tios ainda solteiros que disputavam entre si o direito de assegurar ao sobrinho os passeios às praças e a folguedos como as secretas incursões e banhos nas Praias de Belém Novo ou de Ipanema, confidência à noite desfeita pela minha pueril sinceridade ao revelar à minha severa mãe, para vexame do audacioso tio, a “conspiração” da qual fôramos protagonistas. À vista disso, dali para diante, os passeios quando muito se limitavam à então glamourosa Rua da Praia.

Para eternizar um desses momentos, elegantemente trajados, tio e sobrinho se deixaram fotografar sobre o calçamento de paralelepípedos de granito em mosaico róseo e gris.

Era a Rua da Praia, nos anos 1940/1950, o termômetro da cidade. No Grande Hotel, onde políticos se reuniam para engendrar as estratégias para a campanha eleitoral, não raro eram vistos o Governador Ernesto Dornelles, Vitor Greff, João Caruso e até mesmo o General-Interventor, Flores da Cunha.

Nas pièces privées do Clube do Comércio, na calçada à frente da Praça da Alfândega, ignorando a proibição institucional sancionada pelo ex-presidente Eurico Gaspar Dutra, consumavam-se descaradamente as apostas nas roletas e nos jogos de bacará para seleta casta de sócios.

Aos amantes da boa música e das novidades da discografia internacional era imperiosa a ida até a Casa Victor ou à King’s Discos — esta localizada no primeiro piso da Galeria Chaves, um prédio construído no estilo arquitetônico que remete aos modelos dos palácios renascentistas —, como aos diletantes da literatura o destino era o universo

mágico da Livraria do Globo, e às elegantes socialites da high society as compras nas Lojas Sloper, Casa Louro, Lyra, Masson e Pelaria Europeia.

Essas mesmas mulheres, após se exibirem no gracioso promenade flâner por aquelas afamadas calçadas encerravam a tarde com o chá das cinco, regado a amanteigadas torradas e tortas de indizíveis delícias nas Confeitarias Central, Schramm ou Neugebauer. As mais resolutas se dispunham a subir a ladeira da Rua Dr. Flores até a Praça do Portão e se acomodarem nos requintados salões da Confeitaria Rocco.

À noite reverberavam os imensos letreiros luminosos de gás néon anunciando os filmes exibidos nos cinemas Guarani, Imperial, Cacique, Central, Ópera e Vera Cruz, que a partir de 1953 foi rebatizado como Cine Victória.

Esse cosmos era alvo de meu voraz e assombrado olhar e do orgulho do galante tio nas funções de zeloso guia.

Anos mais tarde, nas matinês dos domingos daquelas mesmas salas de espetáculos, ante meu olhar adolescente e sonhador desfilariam, provocando-me as mais dissemelhantes emoções, filmes como ‘Candelabro Italiano’, ‘Quando Setembro Vier’, ‘007 Contra o Satânico Dr. No’, ‘Blow Up – Depois Daquele Beijo’.

Antes, muito antes, de isso tudo acontecer…

…na terça-feira de um longínquo carnaval, a casa despertara silenciosamente triste. Os círios, postados em quatro grandes castiçais que lembravam a formação de uma guarda-de-honra, em torno do ataúde onde jazia o corpo de minha avó foram acesos.

Um ano após, essa história estava prestes a ser deixada para trás. Para mim, a partida da avó e a despedida da casa onde eu nascera foram os primeiros e amargos sorvos do sentimento de perda; e agora da distância dos tios que preencheram de afetos todos os dias de meus anos primeiros de vida.

Iniciara-se o rito de passagem: a mudança para o recém-construído prédio de apartamentos onde, doravante, seria contada uma nova história.

 

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