Episódio XIX de Navegar é Preciso… – Sergio Agra

“Põe quanto és no mínimo que fazes.

Assim em cada lago a  lua toda brilha, porque altavive.”

Fernando Pessoa

No sábado primeiro da primavera revi Porto Alegre. Não a Porto Alegre em que eu fora parido e criado, tampouco a Porto Alegre aonde eu havia marchado e distribuído panfletos incitando a galera que caminhou, cantou, seguiu a canção e lutou contra um regime verde-oliva autoritário, dominador e sanguinário — afinal, éramos todos irmãos, abraçados ou não, éramos todos iguais, nas escolas, nas ruas, nos campos e nas construções…

Bárbara, minha irmã, conforme combináramos após a tragédia que vitimara nossos pais, tratou de dar andamento ao inventário dos bens a serem partilhados. Ela permaneceu morando no mesmo apartamento aonde residimos desde a nossa infância.

Um ano antes de meu retorno Bárbara conhecera um empresário australiano. Ele lhe propusera casamento e minha irmã seguiria em definitivo para Sidney. Antes de viajar ela decidiu levar meus livros, meus discos e uma grande caixa com cartas, fotografias e meu time de futebol de mesa, os famosos “puxadores”, cuja escalação do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, no ano em que daria início à gloriosa jornada de Hexacampeão Gaúcho ficara gravada na memória: Henrique; Renato, Airton, Altemir e Ortunho. Elton e Milton; Marino. Joãozinnho, Ivo Diogo e Vieira. Ali me instalei quando de minha volta ao Brasil e a essa estranha Porto Alegre…

Eu confundia os nomes das praças e das vias públicas. Há muito tempo elas deixaram de ser Rua Clara, Rua Formosa, Rua do Arvoredo, Rua da Margem, Rua Direita da Igreja, Rua da Praia do Arsenal. Isso agora já não mais importava.

No saguão de mármore róseo do imponente prédio da Casa de Cultura, com estilo arquitetônico onde predominavam elementos neoclássicos, o irado cineasta Jorge F., após dispersar os curiosos, transformou aquele espaço em lúgubre set de filmagem. F. dirigia o filme cuja trama narrava a história de um amanuense que fora mordido por seu próprio grampeador. Nas noites de plenilúnio o escrevente munido de inusitada e gigantesca réplica daquele material de escritório percorria as cercanias da Rua Pantaleão Telles espetando-o no pescoço das prostitutas.

Jorge F. percebeu que eu permanecera na área de filmagem. Tresloucado, o cineasta aos berros exigiu que eu me evadisse do local.

Subi a ladeira da Rua Clara. Na platibanda da escadaria que liga aquela Alameda à Rua do Arvoredo, sob a intensa luz de uma Lua Cheia, vislumbrei dezenas de mulheres vestindo longas túnicas que lembravam as vestais dos templos dionisíacos. Lá embaixo, sob a clareira do pequeno bosque de azaléas, sete magas entoavam cânticos cabalísticos em torno de imenso caldeirão:

— “Quatro vezes por ano somos vistas, no retorno dos grandes Sabbats, no antigo Hallowen e em Beltane, ou dançando em Imbolc e Lammas. Dia e noite em tempos iguais vão estar, ou o Sol bem mais perto ou longe de nós. Quando, mais uma vez, Bruxas a festejar, Ostara, Mabon, Litha ou Yule saudar. Treze Luas de prata cada ano têm, e treze são os Covens também. Treze vezes dançar nos Esbaths com alegria, para saudar a cada precioso ano e dia”.

A madrugada ia alta quando, da beirada do promontório, avistei os cem rebeldes a bordo de pequenas embarcações que atravessavam o Rio Guaíba na altura do Porto das Pedras Brancas sem que a canhoneira imperial percebesse a ousada manobra.

Jorge F. tudo documentava…

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