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Epitáfios – Sergio Agra

Epitáfios - Sergio AgraSERGIO AGRA – Intelectual não vai a praia. Intelectual bebe.

EPITÁFIOS

Mãe exemplar, deixou um legado de generosidades. Adorava dançar e trovar”. “Cheia de sonhos, alegrava-se ao fritar bolinhos-de-chuva para os sobrinhos”. “Aos domingos ele auxiliava o vigário a recolher a sacolinha do óbolo nas missas. Seus hobbys eram varrer o quintal e brincar com a bolinha de borracha com Banzé, seu pet”.  “Era estimada por todos. Costumava ficar à janela cuidando o ir-e-vir dos vizinhos”. “Extraordinário, inteligente, culto, exemplo de fiel conduta conjugal e observância aos bons costumes”. “Apesar de solteira, destinara todo amor aos seus dezessete gatos”. “Tinha satisfação em receber as visitas dos filhos e netos e contar histórias de suas pescarias aos vizinhos”. “Ela admirava o canto dos pássaros e as hortaliças verdejarem nos fundos do quintal”. “Era o ‘Azedinho’ mais doce da cidade”. Estes são alguns dos clichês que recheiam os obituários publicados nos nossos jornais diários.

O defunto por que passe de mágica se transforma em pessoa amável e generosa? Ele fora “do bem”? Fora verdadeiramente bom pai, mãe dedicada, fiel marido e leal esposa e rico em talentos artísticos, culinários, botânicos e musicais? Fora a finada exímia na arte do crochê e no ponto-em-cruz e o falecido imbatível decifrador de charadas? Será que cada um, ao partir, leva na bagagem biografia tão beatífica? Por que cada qual é lembrado como um “monge budista” ou uma “madre Teresa de Calcutá”?

O obituário parece ter como função advogar a imediata obtenção do “passaporte” e do “visto” de entrada para o Paraíso.

Independentemente do quinhão destinado ao “redator”, se o defunto fora de fato pessoa honrada não demandaria constrangidas e simuladas manifestações de “saudades eternas” da parentela ou dos confrades.

Seguindo a “filosofia” das loas e dos panegíricos, Heinrich Himmler, braço direito de Adolf Hitler, teria assim retratado o Führer: “Homem extremamente caridoso, emocionava-se com os sofrimentos dos judeus ante o frio europeu. Embarcava-os em confortáveis trens para se aquecerem nas acolhedoras lareiras de Dachau”.

ChiangChing, sobre o marido, Mao TséTung escreveria: “Aqui jaz o Grande Timoneiro, que executou apenas nove milhões de almas, porque a China possuía de fato patriotas em demasia”.

Imaginemos Roseana Sarney redigindo o de seu pai? “José Sarney, fundador e sócio vitalício do Senado Federal, foi um homem ético, jamais trocou de lado. Proprietário de metade do Estado do Maranhão (a outra metade, alto lá, esta é minha!). Deixou-nos, os filhos, muito bem, obrigada!”.

Por sua vez, “Mulinha”, lembrando o pai, recém-defunto: “Lisinácio foi um marido fiel, pai generosíssimo, operário modelo, nenhum brasileiro foi mais honesto do que ele. Sem nunca ter lido um livro, chegou ao cargo máximo da República. Abstêmio, homem sem vícios, não deixa bens declarados a serem partilhados”.

Haverá quem faça o do hipócrita Caçador de Marajás, proprietário, além do Porsch, da Ferrari e da Masserati, de uma inesquecível Fiat Elba? Quem há de escrever o obituário do Cunha? O do Renan, do Jucá, do Zé Dirceu, do Maluf?

Por isso, Guiga e Fernando, meu neto, estão devidamente instruídos nas providências de meu epitáfio:

“Aqui jaz Sergio Agra. Narcisista, egoísta, orgulhoso, vaidoso, mordaz, polêmico e perdulário. Varou madrugadas ao som dos violões, ao sabor dos bons vinhos e na companhia dos amigos. Constante, fiel, quis apenas glorificar o amor através de seus poemas e crônicas escritos em guardanapos de papel sobre a mesa dos bares. Louras, ruivas, morenas, sempre foram o ideal. Houvesse o que houvesse, amou em todas somente a mulher. Sempre reverenciou a mais bela ode ao Amor, um hino Nupcial – O Cântico dos Cânticos, do Rei Salomão”.

Ela: “Sua boca me cubra de beijos! São mais suaves que o vinho tuas carícias, e mais aromáticos que teus perfumes é teu nome, mais que perfume derramado; por isso as jovens de ti se enamoram.”

Ele: “Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta razão há de te amar! Tuas faces são graciosas entre os brincos, e o teu pescoço entre os colares de pérolas.”

Ela: “Como é belo, meu amor! Como és encantador! Nosso leito é um leito verdejante.”

Era este canto que Sergio Agra (meu esposo/meu avô), nas madrugas já esmaecidas, após incontáveis cálices do néctar dos deuses, despedia-se dos encantados parceiros de copo e de sempre.

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