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Gostoso demais

No domingo, o Dia do Natal, para quem deseja ficar longe dos ruidosos e escandalosos alienígenas que invadem a aldeia, não resta alternativa outra que não a de limpar e arranjar os armários e as estantes. Este ritual tem lá suas conotações, além da de deletar lembranças que já não mais têm sua razão de ser. É a depuração dos escaninhos da alma, dos sentimentos e paixões que transpassam o coração.

E das gavetas eles vão surgindo: cartões-postais, agendas de endereços, cartas de uma amada que, numa cinzenta manhã de outono, foi-se embora com um circo, em “ais” de paixão pelo trapezista; esboços de poemas bêbados, escritos em guardanapos sobre as mesas dos botequins; recortes de jornais.

Indiferentes à distância, ao tempo transcorrido e aos descaminhos, ressurgem, na minha velha caderneta de endereços o teu nome e o número do telefone. Minhas mãos, no entanto, estão rijas e não mais sabem o gesto da busca; desconhecem a procura; emoção e razão empenham-se num insano conflito onde não há vencido ou vencedor, a amarga constatação de que se aniquilam mutuamente. E as saudades afloram aos pedaços como sentimentos dessangrados.

“To com saudade de tu, meu desejo
Tô com saudade do beijo e do mel
Do teu olhar carinhoso
Do teu abraço gostoso
De passear no teu céu*

Tua voz, se ouvida agora fosse no silêncio da hora tardia, faria com que as fantasias brotassem dos escaninhos de minh’alma, liberando recordações: – nossa música em surdina e o vinho generoso que tornavam suave nossa embriaguez.

“É tão difícil ficar sem você
O teu amor é gostoso demais
Teu cheiro me dá prazer
Quando estou com você
Estou nos braços da paz

Naqueles tempos, o estado de graça justificava a minha preguiça em escrever. Tantas foram as vezes em que me pediste uma crônica. No entanto, eu te dizia, éramos muito mais do que uma crônica. Éramos a própria poesia. Sem pretendermos ser uma sinfonia, éramos uma canção: Fascinação, My Way, Je ne regrette rien, Un Homme et une Femme, ao tim-tim dos cálices, à luz de velas vermelhas ou Imagine, o hino de cada despedida. Esquecer? Como?

O estado de graça cedeu lugar a um imenso vazio, o estado de emergência. A crônica, antes cobrada, brotou: a reconciliação com a velha Olivetti*.

Foi uma reconciliação tímida, como o reencontro dos amantes após longa separação. Eram tantas as coisas a serem ditas e as palavras atropelavam-se, histrionicamente, nas escadarias da imaginação.

O estado de graça onde ficou? Nas velas vermelhas que necessitam ser reacesas? Nos cálices do cabernet ou nas almofadas que ficaram pelo carpete à espera dos nossos corpos em cada anoitecer? Faz-se imperativo, então, que deixemos fluir todos os nossos anseios, as nossas angústias, nossos desejos, sem incertezas, sem medos. Torna-se vital que superemos aos ardis do orgulho e à tirania do amor-próprio descabido para reaprender o gesto da busca e abrirmos o coração para as nossas verdades, para deletar o “você foi”; e dizermos, apenas, Eu estou aqui…

“Pensamento viaja
E vai buscar meu bem-querer
Não posso ser feliz, assim
Tem dó de mim
O que é que eu posso fazer?”

* Gostoso Demais, composição de Dominguinhos e Nando Cordel;
**Olivetti – marca de antiga máquina de datilografia.

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