No caminho do Taquari – Sergio Agra

Sergio Agra

NO CAMINHO DE TAQUARI

Capítulo VIII da Série As Crônicas de Aleph

Chovia muito a véspera da Sexta-feira Santa. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam a São Jerônimo, Triunfo e General Câmara, de tão quietas e desertas, a aparência de cemitérios abandonados. O barco a vapor de Mestre Dário, o Porto Alegre, enfrentara com valentia a força das águas do Jacuí. Há muito escurecera quando a embarcação, finalmente, enveredou para o Rio Taquari, por onde alcançaria o embarcadouro da cidade a que emprestara o nome. No porto, apesar do dilúvio, o avô terno de Aleph lá se encontrava, abrigando-se do torrencial aguaceiro sentado ao volante do seu automóvel — um flamante Ford Prefect preto, ano 1952 — estrategicamente estacionado o mais próximo possível do cais, à espera dos familiares.

Após o tormentoso desembarque, envolvido pelo hospitaleiro abraço do avô e indagado de como fora a viagem, Aleph jurou que jamais faria outra jornada a bordo de balouçantes embarcações, não nas condições de tempo como o daquela noite. A mãe, sempre prestimosa aos caprichos do pequeno, aquiescera e, para sossegá-lo, comprometeu-se que, dali para diante, as excursões àquele pequeno e bucólico lugarejo se fariam no automóvel do pai de Aleph. Esta decisão, no entanto, limitar-se-ia a uma única e desgastante experiência, nas vésperas do Natal daquele mesmo ano. A rodovia — então extremamente precária — era, na maior parte de seu percurso, de chão batido. A poeira, erguida pelos veículos que trafegavam no sentido contrário, cegavam totalmente a visão do pai de Aleph, sem considerar as pedras que eram lançadas com violência pelos pneus dos pesados caminhões, que deixavam marcas na pintura da lateral do carro. Em dias de chuva a estrada se transformava em verdadeiro atoleiro, e não guardava, sob qualquer tempo, o fascínio das viagens nos antigos vapores impulsionados por caixas de roda.

Ao se partir de Porto Alegre a bordo de um desses navios, antes de alcançar o delta do Jacuí, vislumbrava-se das vigias dos camarotes as Ilhas da Pintada, da Pólvora e das Flores para, aí sim, se iniciar a subida do leito sinuoso dos rios Jacuí e Taquari, margeados por densas matas nativas que presenteavam com deslumbrantes cenários a cada meandro. Em dias de intensa claridade, a uma distância de quatro quilômetros do porto do destino, quando o vapor iniciava uma longa e suave curva para a esquerda, Aleph, os pais e os demais passageiros, apoiados nas balaustradas, avistavam, por entre a copa das árvores do bosque que ainda hoje a circunda, a pequena povoação; primeiro, o campanário da Igreja Matriz São José de Taquari, na elevação da Rua Sete de Setembro; aos poucos, os altos muros do Seminário Seráfico São Francisco de Assis e os telhados já sem cor definida dos antigos sobrados no estilo colonial português; mais próximo do cais, Aleph já lograva distinguir, tal inabalável sentinela, a possante águia esculpida em granito na cumeeira do solar avoengo. A ave parecia preconizar a chegada dos hóspedes.

O exterior do casarão exibia-se para o leito de três diferentes artérias: na Rua Albertino Saraiva se posicionava a fachada principal, com o magestoso portal, ladeado por duas parelhas de janelões; à direita desta, na Rua Sete de Setembro, posicionavam-se, arejados por largas janelas três luminosos dormitórios; e na fachada oposta a esta, que findava para o pátio onde imperava um magnífico orquidário, a garagem e o acesso secundário que se fazia através de um pequeno portão para a Rua Osvaldo Aranha. Neste solar os recém-chegados eram recebidos por verdadeiro festival de aromas e sabores indescritíveis que se perpetuariam na memória de Aleph: a essência do óleo de peroba nos móveis antigos, o perfume dos jogos de cama lavados e caprichosamente engomados, os eflúvios da goiabada ou do doce de abóbora recém-feitos em tachos de cobre pela avó, que se evolavam por todos os recintos da grande casa. O avô, por sua vez, não cabia em si de contentamento com a visita do primeiro neto e, ante a promessa de, para o dia seguinte, irem ao orquidário, quando o orgulhoso anfitrião exibiria para Aleph os novos espécimes de sua coleção e as medalhas de ouro e de prata, lauréis das mostras e competições daquelas exóticas flores, recolhiam-se todos para o reparador repouso.

Na companhia do avô Aleph fruía, nas horas preguiçosas que antecediam o entardecer, do suave e inusitado prazer em aspirar a adocicada fragrância da fumaça do crioulo e ver o fumo caprichosamente desbastado e enrolado com habilidade na folha de palha. O pequeno gargalhava dos “causos” então narrados com fina ironia — traço marcante do ancestral — das gafes e trapalhices de alguns confrades da aldeia; os olhos, de repente, arregalavam-se, tamanho o espanto, ante a narração do duelo de dois valentes e destemidos que se entreveraram — onde somente os umbus centenários eram silenciosas testemunhas das faíscas das adagas que alumiavam as sombras primeiras do crepúsculo – até que um deles, ferido, tingisse com seu próprio sangue a relva,pelo sortilégio ao vencedor dos encantos de uma jovem, das filhas, a mais bonita, do “coronel” João P., proprietário de campos e terras que se estendiam para os lados de General Câmara e Triunfo. Aleph não mais suportava o suspense, Quem era essa moça? Os olhos do velho guardavam um brilho diferente, Tua avó! Antes que lágrimas lhe turvassem as vistas, o avô inventava, mesmo ante a ingênua curiosidade do neto, anedotas outras contando as sandices de antigo prefeito da cidade. Aleph tinha assomos de risos, E o que foi que o prefeito fez? O avô descrevia, então, a fúria com que o alcaide se voltara contra o Secretário de Obras por ter este autorizado o carregamento de cento e dois sacos de cimento para o galpão, localizado nos fundos do pátio do paço municipal. O Secretário defendera-se dizendo que a autorização, por escrito, partira dele mesmo, o prefeito. Mais irado ainda, a apedeuta autoridade exigira que lhe fosse mostrada semelhante ordem. Num relance, o subalterno dirigira-se ao seu gabinete, trazendo nas mãos uma página do bloco pautado onde, a muito custo, se liam as garatujas: “Manda buscá 1 ô 2 sacus de simentu. É pra oji”.

Nos feriados prolongados como aquele, a casa, após o almoço, era invadida pelo alarido dos demais netos, a despeito dos clementes pedidos da avó de Aleph para que a meninada guardasse silêncio, afinal a sesta era sagrada para o velho orquidófilo e exímio inventor de histórias. Era, então, permitida a incursão do alegre bando à Lagoa Armênia.

Para alívio da matriarca o descanso do esposo estava salvo.

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