O aprendizado do luto
O Senhor é meu pastor, nada me faltará.
Deitar-me faz em verdes pastos,
guia-me mansamente a águas tranqüilas.
Refrigera a minha alma;
guia-me pelas veredas da justiça por amor de seu nome.”
Salmo 23
Na sexta-feira, 17 de agosto, completou-se um mês da maior tragédia aérea anunciada. Verdadeiro crime, fruto de um governo irresponsável, incompetente e arrogante, em que o compadrio supera a todos os valores reais inerentes a um chefe de Nação; resultante de um elemento néscio e contemplador de autênticos sicários para a área onde a segurança máxima deveria tremular como o supremo pendão: a navegação e o seu espaço aéreos.
As chamas do incêndio, provocado pelo choque do Air Bus da TAM contra o prédio localizado a poucos metros da cabeceira da pista do Aeroporto de Congonhas e procedido por uma explosão de inimagináveis proporções, já foram extintas. Os corpos, inteiramente carbonizados, recolhidos e, à medida que iam sendo identificados, entregues às enlutadas famílias para sepultamento.
No local, restaram apenas as ruínas, silenciosas testemunhas do descalabro humano. Nos corações e mentes dos brasileiros, no entanto, aquelas imagens ainda assaltam como noturnos pesadelos. No entanto, ainda que a comoção tenha tocado a todos, cederá espaço a outros eventos, trágicos ou não.
Quem ainda lembra do garoto carioca, o João Hélio, ou de Leonardo Baroni Silveira, o jovem vice-prefeito de Bom Jesus, ou do vigia Rubineu Nobre, de 29 anos, ou do enternecido sorriso de Cristiana Cupini, a universitária, de 22 anos, cujos sonhos foram ceifados por bandidos durante assalto a um carro-forte à frente de uma agência bancária em Porto Alegre? Apenas seus entes mais próximos, suas enfermas e enlutadas famílias.
Sim, como enfermidade psicológica, o luto ocupa um lugar singular. Antes de tudo, é universal, pois ninguém escapa do luto. Assim, ele é a única doença psiquiátrica universal. De todas as doenças psiquiátricas, é a que mais se assemelha a outras enfermidades clínicas, como, por exemplo, doenças infecciosas ou trauma físico. Nenhuma outra enfermidade psiquiátrica tem um início tão preciso, uma causa identificável precisa, um curso razoavelmente previsível, um tratamento temporariamente limitado e um ponto final específico bem definido.
No entanto, compreender o luto com o emprego de um modelo de doença médica é abandonar exatamente aquilo que há de mais humano em nós. Perda não é como invasão bacteriana, não é como um trauma físico. A dor psíquica não é análoga à disfunção do corpo. Mente não é corpo.
A intensidade, a natureza da angústia que sentimos é determinada não apenas pela natureza do trauma, mas pelo significado do trauma. E significado é precisamente a diferença entre o soma e a psique (o corpo e a mente).
Por isso, nessa tragédia em particular, diversos serão os lutos (os significados do trauma), pois diferentes foram as perdas. Pais, filhos, irmãos, avós, sobretudo, os maridos e esposas que aqui ficaram. Nestes é que se concentra em nível maior a intensidade da angústia. Uma proporção dos cônjuges enlutados (aproximadamente 25%), não retoma a vida nem volta ao seu nível anterior de funcionamento, mas, pelo contrário, passa por um grau substancial de crescimento pessoal.
Esses viúvos e viúvas aprendem a abordar a vida de uma maneira bem diferente; desenvolvem uma nova apreciação para o valor da vida e um novo conjunto de prioridades. Aprendem a trivializar as trivialidades, a dizer não para as coisas que não querem fazer, a se dedicar àqueles aspectos da vida que dão significados.
Aprendem a sorver de suas próprias forças criativas, a curtir a mudança das estações e a beleza natural que as cercam. E o mais importante: ganham um aguçado senso de sua própria finitude. Em conseqüência, aprendem a viver no presente imediato, em vez de adiar a vida para algum momento futuro.