Sergio Agra
Colunistas

O Caminho de São Thomé Das Letras – Sergio Agra

O ruído do motor do automóvel lembra o ronronar de um gato em profundo e relaxante sono, sem sobressaltos, como parece ser o rumo que doravante Aleph planeja dar à sua vida. Ele liga o rádio do carro. Das caixas de som a voz rouca, ao mesmo tempo delicada e lírica da maior ‘chanteuse de france’, Edith Piaf, flui numa suave balada.

Non, rien de rien (Não, nada de nada) Non, jeneregretterien (Não, não me arrependo de nada) Nilebienqu’on m’a fait (Nem o bem que me fizeram) Nile mal, tout ça m’est bienégal (Nem o mal, tudo isso, tanto faz para mim!) Non, rien de rien (Não, nada de nada) Non, je ne regretterien (Não, não me arrependo de nada) C’estpayé, balayé, oublié (Está pago, varrido, esquecido) Je m’enfousdupassé! (Não me importa o passado!) Avecmessouvenirs (Com minhas recordações) J’aiallumélefeumeschagrins, mesplaisirs (Acendi o fogo, minhas mágoas, meus prazeres) Je n’ai plusbesoin d’eux! (Não preciso mais deles!) Balayélesamours (Varridos os amores) Avecleurstrémolos (E todos os seus temores) Balayéspourtoujours (Varridos para sempre) Jerepars à zero (Recomeço do zero)…

A imagem de uma pequena e frágil mulher no palco de um fantástico anfiteatro iluminado pelo plenilúnio majestoso parece cantar para um único espectador: Aleph! Ao escutar as frases da canção ele esboça um brando e enternecedor sorriso. Sim, Piaf entoa a belíssima balada, luzeiro que agora guia aquele andarilho não para o final, nem para cortinas que se fecham. Que conduz Aleph por uma ainda desconhecida das tantas estradas que já percorrera. A estrada que o fará começar do zero.

Non, rien de rien (Não, nada de nada) Non, jeneregretterien (Não, não me arrependo de nada) Nilebienqu’on m’a fait (Nem o bem que me fizeram) Nile mal, tout ça m’est bienégal! (Nem o mal, tudo isso, tanto faz para mim!) Non, rien de rien (Não, nada de nada) Non, jeneregretterien (Não, não me arrependo de nada) Carmavie, carmesjoies (Pois minha vida, pois minhas alegrias) Aujourd’hui, çacommenceavectoi! (Hoje, tudo isso começa contigo!)

A autoestrada significa para Aleph a representação tangível de um novo sentido em sua existência. “Estou vivo — ele pensa —, e as curvas da estrada me recordam, não sei por que, as águas do Ibirapuitã”. Entreabre os lábios num suave e agora mais solto sorriso. De repente, todo o seu semblante se escancara de esperançosa alegria, — “O romance! Sim, vou até escrever o romance! Será com estranheza, um estilo que poucos se utilizam. Maiúsculas, somente para o início das frases; substantivos próprios sempre com minúsculas; diálogos inseridos, sem ser irritantes”.

Na vida não sabemos como as pessoas são, então o romancista não deve cercar seus diálogos de explicações arrogantes. Um diálogo simples entre as personagens, e, mesmo não sabendo nada sobre elas, as palavras escolhidas, a hesitação, a construção das frases, tudo isso fará o leitor imaginar o diálogo e ele se tornará muito realista, mesmo sem explicação nenhuma. — “É isso! Estranheza! E por que não começar minha história com essa cena?…

Chovia muito naquela quinta-feira. São borja, itaqui, uruguaiana, alegrete e santana do livramento, províncias da fronteira oeste do rio grande, guardavam, esperançosas de estiagem, o dia onomástico de são pedro; o ano era mil novecentos e cinquenta e quatro. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam aos povoados ribeirinhos, de tão quietos e desertos, a aparência de cemitérios abandonados…”.

As torres da igreja matriz da mítica cidade surgem sobre o verde das copas da mata, suscitando em Aleph o prenúncio de que ele recomeçaria do zero, de que a vida e suas alegrias, hoje, tudo isso, como Piaf cantou, começaria com Maria do Carmo. Como um aresto de sua libertação, Aleph não se constrangeu: abriu a janela do automóvel, lançou a cabeça para fora e clamou para a natureza pujante que margeava a estrada, — “Maria do Carmo… Vida! Estou chegando para vocês!”.

Aleph divisou ao lado do balcão de cerejeira da recepção da pousada a porta de idêntica madeira ao do guichê a placa de metal abronzeado com o sucinto dizer: Gerência. Bateu levemente com os nós dos dedos e abriu a porta com vagar. Maria do Carmo estava de costas, contemplando, talvez, a densa mata que se descortinava até perder-se na linha do horizonte onde o sol se punha por detrás das copas das árvores. Sem qualquer pressa ela se voltou na direção de Aleph. Antes de qualquer manifestação de Maria do Carmo ele perguntou, — “Demorei?”… Ela sorriu, mas havia, sim, um quê de suave tristeza em sua voz, — “Não! Foram apenas trinta anos…”.

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