O caso do sargento das mãos amarradas

Escusado dizer que leio todos os meus confrades, colunistas deste impávido, eclético, sobretudo democrático Litoralmania. Leio, também, as opiniões e os comentários da legião de leitores que este jornal eletrônico e seus escritores amealharam nos seus onze anos de existência.

Assim, não foi com surpresa que percebi, na última crônica do polêmico Jorge Loeffler, os comentários de seus contumazes leitores, sobretudo daqueles que, desta feita, diferentemente, fizeram menção ao implacável ”Gilberto”, o comentarista do “quem gostava de…. era o sargento das mãos amarradas, lembra Jorge?”. Não sei quem, realmente, é o Sr. Gilberto, se detentor de um humor necrofágico ou se cáustico, que importuna, instiga, ainda que no monocórdio lembra, Jorge… lembra, Jorge, …lembra Jorge, como o entende outro leitor, Carlos Cavalcanti.

Nesses anos todos percebi que a grande maioria dos leitores de Litoralmania possui vasta bagagem de conhecimento da história política, econômica e social do Brasil. Se eu estiver “chovendo no molhado” peço vênia, no entanto, para contar aos mais jovens, que não vivenciaram os malfadados anos de chumbo impostos pela ditadura militar, o sombrio episódio de Manoel Raimundo soares, o sargento das mãos amarradas.

Manoel Raimundo Soares nasceu a 15 de março de 1936, em Belém do Pará, filho de Etelvina Soares dos Santos. Morreu aos 30 anos. Cursou o primário no Grupo Escolar Paulino de Brito e depois foi para o Instituto Lauro Sodré, onde fez o curso de aprendizagem industrial, estudando e trabalhando numa oficina mecânica. Aos 17 anos foi para o Rio de Janeiro. Em 1955, ingressou no Exército. Era um estudioso e amante da música erudita. Em 25 de agosto de 1963 foi transferido do Rio de Janeiro para Mato Grosso como represália a sua participação na vida social do País e, em abril de 1964 teve sua prisão decretada. Foi viver na clandestinidade.

Foi preso, no dia 11 de março de 1966, em frente ao Auditório Araújo Viana, em Porto Alegre, por dois militares à paisana, sargento Carlos Otto Bock e Nilton Aguiadas, da 6ª Companhia da Polícia do Exército (PE), por ordem do Comandante dessa guarnição, Capitão Darci Gomes Prange. Foi conduzido em um táxi à PE, onde foi submetido a torturas pelo Tenente Glênio Carvalho Sousa. Destacaram-se também no espancamento o 1º Tenente Nunes e o 2º Sargento Pedroso. Mais tarde, os mesmos militares o entregaram ao DOPS, com a recomendação de que só poderia ser solto por ordem do Major Renato, da PE.

No DOPS, Manoel foi torturado pelos Delegados Itamar Fernandes de Souza e José Morsch, entre outros.

No dia 24 de agosto de 1966, seu corpo foi encontrado boiando no Rio Jacuí.

Segundo depoimentos das testemunhas ouvidas no inquérito instaurado para esclarecimento da prisão, tortura e morte do Sargento Manoel Raimundo, sua via crucis pelos órgãos de repressão foi a seguinte: até o dia 19 de março, esteve detido no DOPS; em seguida, foi transferido para a ilha-presídio então existente no Rio Guaíba; em 13 de agosto foi recambiado para o DOPS e, em 24 de agosto, foi encontrado boiando no Rio Jacuí.

Seu corpo, em estado de putrefação, tinha as mãos e os pés amarrados às costas, apresentando sinais diversos das sevícias sofridas durante o período em que esteve preso.

No inquérito aberto, várias testemunhas contradisseram a nota oficial divulgada à época, que dava conta da soltura de Manoel Raimundo no dia 13 de agosto. O estudante de agronomia Luis Renato Pires de Almeida, preso na mesma época, afirmou que Manoel Raimundo estava em uma das celas do DOPS gaúcho na noite de 13 de agosto e nos dias seguintes; informação esta confirmada pelo depoimento do ex-guarda civil Gabriel Albuquerque Filho.

O inquérito arrolou, como acusados da prisão, tortura e morte de Manoel Raimundo, as seguintes pessoas: guarda civil Bolony Godói Pereira, os tenentes Luiz Otávio Lopes Cabral e Rui Alberto Duarte, os sargentos Milton Ferrarezi, Hugo Kretschoer, Nilo Vaz de Oliveira (vulgo Jaguarão), Ênio Cardoso da Silva, Theobaldo Eugênio Berhens, Itamar de Mattos Bones, Eloir Behs, Volnei da Cunha, Ênio Castilho lbañes, “Tenente Nunes”, Comissários Correia Lima, Ribeiro e Régis, os delegados José Morsch, Itamar Fernandes de Souza e Renato, tenente-coronel Luis Carlos Mena Barreto e o major Átila Rohrsetzer.

Sua necropsia, feita no IML/RS, em 25 de outubro de 1966, pelos Drs. Fleury C. Guedes e Antônio F. de Castro, confirma que houve lesões no corpo de Manoel Raimundo, que provavelmente houve violência e indicou que Manoel faleceu entre os dias 13 e 20 de agosto de 1966.

O depoimento do ex-preso político, Antônio Giudice, ao Jornal “Zero Hora”, de 17 de setembro de 1966, diz que de 10 a 15 de março de 1966, esteve preso no DOPS/RS e que conversou com Manuel Raimundo, vendo os hematomas e cicatrizes decorrentes das torturas que vinha sofrendo. Era, diariamente, torturado, colocado várias vezes no pau-de-arara, sofrendo choques elétricos, espancado e queimado por pontas de cigarros.

Durante os 152 dias em que esteve preso, Manoel Raimundo escreveu várias cartas da prisão, a última das quais enviada da cela nº 10, da Ilha Presídio de Porto Alegre, e datada de 25 de junho de 1966. Seu caso teve grande repercussão e causou comoção na opinião pública, em vista da ampla denúncia feita.

Um fato revelador da comoção criada pelo chamado, à época, “Caso das Mãos Atadas”, foi a declaração do Ministro Marechal Olímpio Mourão Filho, do Supremo Tribunal Militar (STM), quando da apreciação de um habeas-corpus em favor de Manoel Raimundo: “Trata-se de um crime terrível e de aspecto medieval, para cujos autores o Código Penal exige rigorosa punição”.

Em consequência da apreciação deste habeas-corpus, foi determinada a remessa dos autos ao Procurador-Geral da Justiça Militar para abertura de um IPM, que foi arquivado sem sequer indiciar os acusados, apesar dos inúmeros depoimentos que mostravam o crime cometido contra Manoel Raimundo Soares, seus assassinos permanecem até hoje impunes, alguns inclusive foram promovidos.

Manoel foi enterrado no dia 2 de setembro e uma pequena multidão acompanhou o cortejo. Por onde passou lojas se fecharam e foi hasteada a bandeira nacional. No cemitério, um estudante gritou para um policial à paisana: Assassinos! Assassinos!, repetiu a multidão. Estas informações constam do relatório final da CPI da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para apurar o caso.

Era comandante do III Exército, à época desse crime, o general Orlando Geisel, irmão do futuro presidente-ditador Ernesto Geisel.

O relatório do Ministério da Marinha, ainda tentando encobrir fatos já bastantes esclarecidos pela CPI e procurando difamar Manoel, insiste em reafirmar uma falsa versão sobre o crime ao dizer que “sua morte teria sido consequência de justiçamento em ‘razão dos depoimentos que prestou.’”.

Fontes pesquisadas


Relatório

Relatório produzido pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil em 02/73. Denuncia mortes de presos políticos aos Bispos do Brasil. Documento apreendido pelo DOPS em poder de Ronaldo Mouth Queiroz.

Livro
Cópia de livro em papel timbrado da Secretaria da Segurança Pública com carimbo do DOPS. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Tortura e morte do Sargento Manoel Raymundo Soares. 45 p. Biografia de Manoel, informa suas atividades como militar, ativista político, sua prisão e morte após ser torturado nas dependências do DOPS e no Presídio da Ilha das Flores juntamente com Luiz Renato Pires de Almeida, estudante e companheiro de cela. Depoimentos das pessoas que testemunharam a prisão e torturas sofridas por Manoel. Há também o relatório dos processos abertos pela Assembleia Legislativa para investigar a morte e as torturas sofridas por Manoel no DOPS/RS. Informa que todos os militares envolvidos nas torturas e morte não foram punidos.

Parte de livro Teles, Janaína (org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas – FFLCH/USP, 2000. p.172-176. Lista de nomes dos presos políticos cujas famílias receberam indenização do governo por este ter assumido a responsabilidade pela morte ou desaparecimento dos mesmos.

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