O Reveillon de 1973
Omitindo nomes e endereço, digamos que a família “Guedes” era proprietária de sóbria mansão na Rua Barão de Santo Ângelo, no bairro Moinhos de Vento. A casa fora erguida sobre um patamar elevado da calçada. O muro de pedra exposta impedia a visão interna da propriedade. Sabia-se que a residência, no seu pátio, possuía uma bela piscina, construída em alvenaria, ao lado de uma espécie de galpão aberto, com telhas de barro deitadas sobre pesadas vigas de itaúba-vermelha, o que emprestava ao ambiente um tom náutico de sobriedade e requintado bom gosto.
Alírio Cássio Zabanetta Noronha era amigo da filha caçula da família, Carmem Lúcia, estudante de literatura. Ela o convidara para passar o Reveillon de 73, à beira da piscina. A gentil amiga acenou-lhe que, caso quisesse, Zabanetta poderia levar um ou outro amigo. Seria comemoração simples e íntima, “Coisa restrita — ela dissera — só para não deixar a passagem de ano em brancas nuvens”. Zabanetta convidou Beto Vitola, Artur Poester e Harley Dullius.
Vinte minutos após a virada do ano, Zabanetta — trazendo embaixo do braço uma garrafa de ordinária vodka que o quarteto presentearia seus anfitriões — batia à porta da mansão.
Artur, para a ocasião, vestiu-se de branco e calçava tamancos que lhe deixavam à mostra os dedos dos pés. Um colar havaiano enfeitava-lhe o pescoço. Harley, por sua vez, usava uma bermuda verde, camisa preta, sapatos de amarrar e meias, igualmente pretas, puxadas até a metade das canelas. Beto Vitola trajava um casaco riscado, azul-marinho, sobre a camisa e as calças. Era o único que, na indumentária, aproximava-se do que o protocolo, ainda que informal, minimamente exigia. O ambiente, de luxo impactante, não era para o perfil dos quatro, pouco acostumados ao refinamento e às formalidades. Mas as portas lhes foram abertas e a festa já havia começado.
Madrugada primeira do ano que recém se iniciava: — a festa, decididamente, estava fadada ao malogro. Poester simplesmente apoiara os pés sobre a mesa. Os tamancos deixavam seus dedos à mostra. Vociferava contra os desavisados convivas que tivessem a infelicidade de com ele cruzar:
— O importante é liberar o ego… É liberar o ego…
Beto Vitola ia de mesa em mesa, puxando assunto, sem que houvesse receptividade. Ele sempre era repelido pela soberba típica dos presunçosos. Após a abordagem, o grupo, mostrando-se incomodado, se dispersava pelo gracejo, atípico de uma noite de ano novo.
Ante as diatribes que ameaçavam se avolumar, a anfitriã dirigiu-se de forma deselegante a Zabanetta determinando que Vitola fosse retirado da festa, “Afinal — ela argumentou — ninguém está na dele”.
Zabanetta transmitiu o recado ao amigo. Ajustaram que não poderiam, no entanto, sair da festa sem mergulhar na cristalina e convidativa piscina, o que, de imediato, transformou-se em ação, sob os olhares de censura e de perplexidade dos demais convidados. A queda na piscina foi precedida de forte alarido: um companheiro jogou o outro, sem se esquecerem, de dentro da piscina, do convite para que os demais aderissem ao mergulho.
— As meninas podem vir de calcinha e sutiã — bradava Beto.
Carmem Lúcia imediatamente acorreu à beira da piscina e, resoluta, mandou que se fossem. A ordem, é claro, teve que ser obedecida. Calmamente, o quarteto deixou a casa.
Inteiramente encharcado, Beto virou-se para a anfitriã que, naquele momento, abria a porta procurando abreviar a saída, e alertou:
— Desculpa, Carmem Lúcia, mas seria melhor trocar a água. Eu estou com blenorragia e urinei dentro da piscina! E pensar que foi uma estudante de literatura que me passou a gonorréia…
Ao deixarem a casa reverberava no horizonte o primeiro dia translúcido e quente de um novo ano.
Sequer imaginavam os quatro álacres amigos que as vicissitudes da vida, em 1973, transformariam, indelével, o destino daqueles detratores de tertúlias.