O último bonde
Respondendo a Juarez Trindade, com amizade.
O casario da rua Avaí era antigo. A capela e o convento de Nossa Senhora do Carmo emprestavam a Porto Alegre a imagem de bucólica aldeia. Eram os anos dourados.
Aos sábados seguiam-se os domingos. Os bondes rodavam em cima dos trilhos e os namorados passeavam de mãos entrelaçadas. As mulheres eram atentas e todos os maridos “funcionavam” regularmente. Antigos carnavais: pierrôs, colombinas e arlequins. A commedia dell’arte engalanava as ruas e avenidas – palcos apoteóticos. A bossa nova e João Gilberto singravam n’O Barquinho as águas do Guaíba para ver a Namorada, a Garota de Ipanema. Cely Campello tomava Um Banho de Lua e Sergio Murillo cantava “Oh, oh que broto legal…”. A Pimentinha, soberana, florescia no Clube do Guri, Baldauf embalava corações apaixonados nos Bailes da Reitoria.
Aos domingos – cheiroso e faceiro – eu embarcava no bonde “Teresópolis – Alto da Pedreira” e, em loquaz trela com Erasmo, o motorneiro, seguia até a Cidade Baixa. Destino: missa das dez horas na Capela do Carmo.
Depois do almoço no solar avoengo e das matinês do Cinema Marabá seguia até a rua Avaí. Na paz estrelada das noites de longínquos verões, das janelas do sobrado amarelo, ela – minha musa primeira, paixão indelével – confidenciava aos astros os sonhos mais recônditos. Doía minh’alma saber-me alijado de seus devaneios. Consumia-me no fogo do ciúme. Magoava-me vê-la – etérea e formosa estampa – abandonar-se, ao som da música em surdina, em braços outros que não os meus.
Eu nutria as fantasias do amor idealizado – amarguroso Dom Quixote ao encalço de Dulcinéia – estivesse ela onde estivesse: na sala de aula e no recreio do Grupo Escolar da rua Cel. Genuíno, na Capela do Carmo – onde era ela anjinho na liturgia das missas dominicais. À distância, defendia-a de quimeras que somente eu divisava. Ela, divindade, alçava vôos a esferas inacessíveis aos comuns dos mortais. Sequer soube, algum dia, de minha paixão, errático cavaleiro andante subjugado a seus pés.
Então, quedava-me no último banco do bonde, àquelas horas quase vazio, e voltava pra casa, abatido, desencantado da vida. Erasmo espiava-me pelo espelho retrovisor. Respeitava o meu silêncio. Sabia a minha dor.
Somente os muros do Convento resistiram heroicamente à profunda incisão na geografia da rua Avaí. – Haverá, ainda, anjinhos na liturgia das missas dos domingos? – O bucólico cedera espaço ao ronco dos bólidos em disparada, às balas perdidas em tiroteios. Os amantes cultuam o virtual e delével amor, as mulheres derruíram a torre do servilismo e aos homens restou-lhes a eficácia dos eretores farmacológicos.
Os antigos carnavais, os pierrôs, as colombinas e os arlequins sucumbiram ao mercantilismo dos mestres-salas e porta-bandeiras. Porto Alegre transfigurou-se nas mãos de um governo populista. Ficou entristecida, violenta, imunda e politicamente estuprada. O Guaíba poluiu-se e o Barquinho, Desafinado, naufragou. As luzes e a música dos salões da Reitoria esmaeceram-se ante o estertor pornográfico do funk e do rap. Elis, hoje, é uma Estrela. Eu, obstinado passageiro, espero o último bonde, recusando o fato de que Erasmo alçara, do alto das pedreiras de Teresópolis, o seu vôo de libertação, levando nos bancos os sonhos de um Dom Quixote. Ela, Maria do Carmo, meu primeiro referencial feminino, razão de toda a remembrança, mesclou-se em luzes e sombras de um arvoredo infindável.