Oh, Calcutá!
Os pesados caminhões que supriam o grande mercado de hortifrutigranjeiros, os automóveis e as moto-taxis lembravam em muito o trânsito do Brasil. As portas dos bazares deixavam sutilmente à mostra aos passantes as especiarias de Singapura, Catai e os eletrônicos de Taiwan.
Das casas de saunas rescendia o aroma dos incensos. Os letreiros luminosos das boates mostravam dançarinas em movimento, aliciando o estrangeiro para um inesquecível mergulho nos milenares mistérios da sensualidade oriental.
Nas escadas de acesso à estação do trem viam-se músicos com as caixas de seus instrumentos abertas onde rebrilhavam algumas moedas. Por esse mar de gente Alef cruzou até alcançar a plataforma de embarque.
Em marcha lenta, o trem deixou a gare para ganhar os subúrbios de Calcutá. Alef depositou a pequena mala no compartimento de bagagens sobre os assentos. Depois de acomodar-se na poltrona ele descortinava a paisagem que a larga janela do trem lhe ofertava com o deleite de quem não tinha prazo ou destino certo de chegada.
O sol intenso de primavera, o céu despovoado de nuvens, dava mostras de que aquele seria um dia quente durante o longo trajeto até Benares, aonde faria conexão para Nova Delhi. Alcançaria esta cidade, passando por Kanpur e Agra, por volta da meia-noite.
À medida que o comboio abandonava os limites de Calcutá, o verde e a mansuetude das planícies iam predominando. A imagem dos pastores conduzindo seus rebanhos pelas pradarias trouxe a Alef um sentimento de paz que há muito desconhecia. Recordou as viagens de trem que empreendera, quando menino, para passar as férias na fazenda do avô. O pensamento viajou, por sua vez, para aquele tempo já tão distante.
Viu-se chegando à Estância do Tujumirim e estreitar o velho para o abraço desabrido, que é como o gaúcho da campanha mostra lealdade àqueles por quem tem benquerença. Alef lembrou-se da madrugada em que o pai o acordou e, todo cuidados, disse:
– Acorda, filho! Vamos, levanta-te!
Estremunhado, o garoto esfregou os olhos.
– O que é, pai? – demonstrava zanga. – Hoje é domingo, não tem aula.
– Sei, filho. Acontece que iremos viajar. Tua mãe já acordou teu irmão.
– Viajar? – Surpreso, sentou-se na cama totalmente desperto. – Para onde?
– Para a fazenda. – Consultou o relógio. – Sairemos dentro de meia hora. – Para que o filho não o visse chorando, dirigiu-se à cômoda e apanhou algumas peças de roupas. – Vovô faleceu.
– O vô?…
– Sim! – estendeu-lhe os agasalhos. – Enforcou-se na figueira, aquela em que tu construías tuas cabanas de explorador.
Leandro Adriano, naquela tarde de sábado, escrevia seus contos sob a janela aberta, do lado de fora da casa. Ele sempre se emociona ao contar o que se passou na grande sala.
“A casa ficou duplamente fria quando o Major Taurino Fuentes entrou. As paredes, de impressionante lisura e palidez, contrastavam com as dúzias de carquilhas encravadas naquele rosto anguloso e maculado por pelos que ali se alastravam há mais de vinte dias. Afrouxou a gravata, abriu, na altura do pescoço, um dos botões da camisa que vestia por baixo do paletó e escorregou suavemente a palma da mão sobre a própria nuca, numa tentativa de relaxamento.
Não ousou procurar a parede como apoio para assentar-se sobre o tapete de pelego. Nem suas articulações, nem o eco daquela peça descomunal ajudaram-no em sua pretensão de silêncio absoluto. Respirava profunda e desesperadamente, como se lhe fosse possível extinguir o ar existente naquela construção que esbanjava tanta verticalidade quanto uma catedral. O olhar, longe e disperso no profundo corredor que antes o conduzia ao seu mais íntimo aposento, retornou-lhe aos olhos como uma chibatada na face, efeito de um leve ruído procedente de sua retaguarda.
Virou-se lentamente, mas com determinação que não surpreenderia a nenhum dos velhos parceiros, mostrando, ao final do movimento, não ter sido enganado pela própria expectativa.
Jose Ortega possuía o semblante de homem bafejado pela sorte. Seus dentes, revelados por um sorriso desavergonhado, eram brilhantes e numerosos; difícil de contá-los. Ficou parado por um bom tempo até Major Taurino manifestar-se novamente.
Guardadas as posições, Ortega se apresentava como um gigante, quase tocando o topo da cabeça fulva no teto. Major Taurino levantou-se com o intuito de desfazer o equívoco dos olhos, mas, mesmo erguido, para que pudesse encarar seu desmancha-prazeres, era necessário jogar a cabeça levemente para trás.
– Parece horrível essa sensação – disse Ortega, após um frouxo aperto de mão. – É engraçado – prosseguiu – comigo, porém, acontece exatamente o contrário. No decorrer dos anos, só fiz conquistar – completou, com a truculência de um lobo de fábula.
Os olhos do Major Taurino ficaram quentes e úmidos.
Pensou em saltar sobre a garganta do pulha. Seria um lenitivo para a raiva. Perder a compostura, no entanto, não fazia parte das regras daquele jogo. Permaneceu em silêncio e observou o movimento da samambaia no alpendre, impulsionada pela leve brisa de fim de tarde.
Só voltou a prestar a atenção nas palavras do castelhano quando este revelou que a vontade de possuir a mais luxuosa casa de fazenda da região vinha de longa data e não perderia a menor chance de tornar maior o seu patrimônio. O Major pensou na possibilidade de ter caído numa cilada. Afastou esse pensamento.
Depois de um longo silêncio, Ortega sugeriu ao Major que deixasse o casarão:
– O tempo para a despedida já expirou há algumas horas.
Antes que o Major Taurino desse os primeiros passos em direção à porta, Ortega indagou-lhe se gostaria de escolher alguma das peças que compunham a mobília. Major Taurino meneou a cabeça, num gesto de negação, e o argentino insistiu:
– Nem mesmo o retrato da falecida? Garanto-lhe, mi hermano, não me fará falta niguna.
Major Taurino deu de ombros e iniciava, uma vez mais, sua saída quando sentiu uma mão tímida tocando-lhe o antebraço.
– Gostaria que aceitasse isto – este era Jose Ortega, enquanto arrancava do bolso um maço não muito generoso de pesos.
Com altivez, Major Taurino Fuentes apanhou as notas. Com um golpe violento – antes de atingir a soleira da porta – jogou-as para o alto, desaparecendo, a seguir, nas pradarias, rumo à grande figueira.”
Leandro Adriano tivera um mau pressentimento.
Envolvido por essas remembranças, Alef sequer percebera que o trem havia parado em Howrah e que alguns poucos passageiros embarcaram, dentre estes uma bela jovem. Ela acomodou a única mochila que portava no mesmo compartimento em que se encontrava a mala de Alef. Desceu o zíper da jaqueta de brim e sentou-se na poltrona ao lado da de Alef.
Viajaram em silêncio por um longo trecho. Nisso, a jovem levantou-se e abriu o seu alforge, dele retirando um sanduíche de pão de centeio, forrado com uma generosa folha de alface, brócolis e uma rodela de tomate. Partiu o sanduíche ao meio e ofereceu uma das metades a Alef. Este agradeceu. Não, ele não poderia aceitar, afinal, era o que ela tinha para alimentar-se.
Ao responder, havia na jovem mulher tamanha ternura e, ao mesmo tempo, ternura em seu gesto:
– Os Budistas, oferecemos o manto que nos aquece e a comida de nossa tigela para quem deles necessite. – E estendendo o pequeno maná, convidou o companheiro de viagem àquela comunhão. – Aceita como uma dádiva que Ele nos concede.
Fora naquele momento que Alef lembrou-se com ternura do avô.