Onde Anda o Gregório? – José Alberto Silva

José Alberto Santos da Silva

Final da adolescência, alistamento militar obrigatório, alguns com título eleitoral, Floresta Aurora, Rua Lima e Silva, década de 60’, meninos risonhos, sonhos não revelados, receosos de riscos aleijantes, procurávamos amizades que não fugissem desse padrão mínimo de auto-preservação, nível social semelhante, boas leituras, sem riscos ou comprometimentos.

Por visar carreiras ou qualificação exigida por meninas de família, íamos a escolas e seríamos honrados apenas por trabalharmos.

Mal sabíamos estar meio a pessoas qualificadas mas sem projeção que não diziam aos jovens sobre sacrifícios sociais e profissionais que faziam para serem alguém.

Nosso grupo se restringiu a doze rapazes bonitinhos, namoradores, gargalhantes, de bebedeiras eventuais.

Morávamos distantes uns dos outros mas frequentávamos nossas famílias. Nesse nível médio de educação e cultura, porém juntou-se a nós uma exceção: o Gregório.

Sua aproximação esporádica cresceu com o tempo. Apesar do pouco estudo, o Gregório declamava e gostava de teatro; era bem empregado, idade na faixa dos quarenta anos enquanto nós estávamos na faixa dos vinte. Solteiro, desfrutava da vida desejada por nós.

Excessivamente sério, censurava excessos de risadas e bebidas; em nossos encontros, não dava certeza de comparecer em função de compromissos.

A tudo nele, nosso deboche e gargalhadas. Falávamos sobre colégios, empregos, namoradas, vestibulares, concursos.

Do Gregório éramos só gozação às custas dele, de roupas repetidas em funerais e casamentos, de seu corte de cabelo de seu mau humor.

Sabíamos pouco de sua vida. Reclamei seu sumiço do ponto na cidade onde nos encontrávamos. Ao voltar disse que estava vivendo com uma antiga namorada, “moça feita”, isto é, com mais de trinta anos, solteiríssima, “virgensíssima”. Caímos na gargalhada ao invés de perguntar o nome dela.

Entramos na estação de casamentos sucessivos. Em todos deu conselhos matrimoniais e respeito à condição da mulher, mas não limitava sua vida à sua convivente.

Um dia disse que perdeu o emprego, que estava separado e que iria viajar. Meses depois o grupo sofreu baque com a perda súbita de um dos amigos. Infartão. Reverenciamos o amigo caído. O Gregório não foi encontrado.

Não nos importamos vez que estávamos com filhos, trabalhando muito e sem graça pra risadas. Consolamos-nos com encontros seguidos traídos por Deus em nossa juventude prolongada. Bens materiais deixados para trás são o menor dos despojamentos sofridos com o passamento; maiores são os sonhos e planos ou ainda habilidades únicas e intransferíveis.

Cada vida humana traça compromissos e potencialidades únicos para serem cumpridos por aquela vida; nos animais o que não for realizado por um bicho será feito por outro.

A morte ficta do Gregório foi mais pungente do que a do amigo infartado. Conjecturamos sobre a estada no útero, na encarnação e no desencarne.

Começamos caçada ao Gregório numa reaproximação de todos da turma. Na Repartição onde ele trabalhara ninguém lembrava, bares e restaurantes que frequentava nada. Velho, devia ter morrido. Se morrera saberíamos sua causa mortal: chatice.

Com os amigos era opressor a ponto de um atraso ser motivo de reclamações. Com as namoradas batia nas raias de ser cruel. Para livrar-se de uma reputação de puta imposta como herança da escravidão a mulher negra se submetia a opressão santificante.

Para não mais se submeterem ao injusto do machismo ela cria conceito de liberta seriedade. Nossa turma mantinha, desde a adolescência até a madureza, essa abusiva relação com o Gregório que ainda nos tinha por moleques porque ríamos de seu cabelo e do uso de seu título eleitoral. Assim mesmo a confirmação de sua morte nos traria uma reza com gosto de abandono.

Sucederam-se nesses dias uma série de curiosidades entre os amigos.

A primeira foi a somatizaçao que revelou problemas de hipertensão, digestivos, de visão, de audição, diabetes, enfim visitamos hospitais e nossos filhos cresciam.

Num amanhecer os dez amigos trocaram ligações para dizerem haver sonhado com o Gregório entre faceirices e queixumes.

A terceira e mais grave foi que vários deles noticiaram com urgência terem visto o Gregório em algum lugar na rua, porém sem conseguir falar com ele.

Ora ele fora visto em um ônibus e o pedestre o perdera, ora estaria no outro lado de uma barreira, enfim, situações que impediam os amigos de aborda-lo. Talvez o Gregório não quisesse rever os amigos.

 – Te conheço, com certeza?

Foi por minha mulher que fomos num samba gritado. Quem eu vejo emburrado e sozinho no balcão da Copa? Abri os braços de euforia.

Eu queria abraçá-lo e beijá-lo e ele espalmava as duas mãos em meu peito como que a manter-me distante de seus cabelos brancos.

Chamei minha mulher que sorriu pra ele. Ele que amenizava asperezas com as mulheres dos amigos agora olhou pra ela como quem vê uma peçonha.

Num misto de alivio e comiseração relacionei sua atitude com algo em sua psique que pra mim o colocava a ponto de perder a razão. Mesmo com a barulheira do ambiente sua fala estridulava como se quebrasse a integridade dos ares.

 – Gregório! Por onde tens andado, homem de Deus?

 – Eu não sou o Gregório! – disse ele e deu-nos as costas, andando pro lado oposto. Fui atrás fazendo perguntas e mais ele se enfurecia.

 – Está bem, vou te explicar.

Disse que chegara há poucos dias de Pelotas onde morava no Bairro Fragata. Cheguei a sentir emoção em perceber naquele clone do Gregório semelhanças até nas ranhuras de sua voz.

Minha mulher embasbacada talvez lembrasse, ressentida, de sua cara de nojo quando comia qualquer prato que ela lhe oferecia; pior ainda, quando soltava muxoxos de desprezo por nossos filhos ranhentos.

Sem me dizer seu nome explicou ser gêmeo do Gregório e serem inimigos por causa de uma mulher há muitos anos.

Tiveram sentimento passional por uma Rainha do Fica Aí!

Explicou que soubera que o Gregório tinha vindo para Porto Alegre e ele ficou em Pelotas e não queria encontrar seu irmão. Iria ao nosso encontro se ele não estivesse.

O fantasma do Gregório que víamos nas ruas rejeitava o representado. Já o fizeram parar na Rua da Praia o tratando por Gregório.

Deixei minha mulher com ele para ir ao banheiro. Conversavam sobre ida a minha casa na Cidade Estado do Urubatã, ao sul de Porto Alegre, imediações da Serraria, Belém Novo e arredores. Iria no domingo para viajar na segunda-feira.

Os amigos confirmaram chegada com suas mulheres enigmaticamente risonhas. Lamentamos a falta do Gregório de quem ríamos à toa.

Ele foi o primeiro a chegar e engoli o fato de vê-lo vestindo umas calças que o Gregório usava com frequência sendo fotografado com ela.

Será que tinham o mesmo gosto por calças e rainhas do Fica Aí? Chegou acompanhado de uma bela mulher madura.

Sabe aquela mulher velha que desafia idosos a desfrutá-la à contento? Saborosa nos detalhes de andar e suspirar, ela era a própria mulher do próximo. Rainha do Fica Aí! Ela sorria na entonação das outras. Chegaram o segundo, o terceiro, e todos o trataram de Gregório pra cá, Gregório pra lá!

Mantivemos comportamento formal frente ao sujeito. Antes do almoço, minha mulher, risonhamente, pediu que ele mostrasse seus documentos. Ele explicou que não perdera o emprego e sim fora transferido para outro Estado quando se casou com a Rainha do Fica Aí na década de 70’. Taí ela! Rainha do “slack” elegante!

Ele disse ter mãe e uma irmã em Pelotas, e, como ninguém lhe perguntara, não disse que em Porto Alegre morava numa pensão. Disse que estava em férias procurando por nós que mudamos empregos e endereços.

A única que encontrou foi a minha mulher, a Rainha Doce, trabalhando no mesmo lugar e combinou essa encenação teatral para nos pregar essa peça. Queria nos devolver as gozações e deboches que lhe impomos a vida toda, mais isso e mais ladainha.

Ele ria de se finar. Os mais emotivos choraram ao confirmarem a identidade do homem desfigurado pela idade provecta mas portando sempre a mesma chatice: Gregório!

Ele repetia que estava rindo por último ao nos lembrar daquelas calças várias vezes fotografada em casamentos, funerais, bares e restaurantes que nao era a mesma mas outra igual.

Ninguém se lembrava de vê-lo rir daquela forma. Ressentido, eu olhava para a Rainha Doce perversa, com olhar de marido caído. Desenxabidos, frentes a esse poder secreto da nova mulher, vimos que maliciosamente elas riam com ele, e os maridos as perdoariam – mas só desta vez.

José Alberto Silva

Jalberto136@gmail.com

Comentários

Comentários