Sergio Agra
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Os anos dourados – Episódio VI de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra

OS ANOS DOURADOS

Episódio VI de As Crônicas de Aleph

Os anos dourados - Episódio VI de As Crônicas de Aleph - Sergio Agra

No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje,

que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores,

vamos na dança como na verdade.”

Fernando Pessoa

A vivenda para os veraneios era nos tempos primeiros uma despretensiosa construção que meu avô materno lograra erguer com os frutos do trabalho e dedicação por mais de três décadas como Almoxarife-mor de uma sólida e cinquentenária instituição financeira. Dei àquela construção o nome de ‘Chalé Grande’; era constituída, além do rés-de-chão, por um sótão com área útil similar à do pavimento térrero. Naquele espaço superior o gênio criativo de meu avô, ante a chegada de novos netos, concebera duas alas, divididas por um cortinado suspenso num cordame que se estendia de uma extremidade a outra da mansarda, guarnecidas com sete pequenos leitos e dois ou três rústicos armários à guiza de roupeiros. De um lado do reposteiro dormiam minha irmã e duas primas; do outro, eu e os três primos. Eu fui o primeiro dos netos.

Com a morte do sogro meu pai adquiriu o terreno vizinho e, para choro e ranger de dentes da molecada, pôs o ‘Chalé Grande’ abaixo. No seu lugar ergueu uma casa de alvenaria provida de todos os confortos que os novos tempos ensejavam: dois pavimentos, com área maior do que o vetusto casarão, água encanada, ducha exterma para os banhistas que retornavam da praia, situada junto ao muro nos fundos do terreno. No segundo pavimento instalaram-se duas suites, três dormitórios e dois banheiros; na parte térrea, a cozinha americana, apenas separada da sala de jantar por um longo e prático balcão com cobertura de granito esmaltado e a colossal mesa, com tampo do mesmo material que ornava o balcão; esta mesa acolhia comodamente até doze comensais.

A casa também dispunha de lavanderia, churrasqueira, garagem coberta para dois automóveis, e um amplo e confortável living, onde meu pai, na temporada de verão, nas manhãs dos domingos, a exemplo do que durante o ano ocorria na cidade, costumava receber a visita do Sr. Leccapiedi.

O Sr. Leccapiedi, ainda rapazote, fora admitido no banco e designado para o Almoxarifado, sob a supervisão de meu avô, a quem o Sr. Leccapiedi destinou sincero e perene reconhecimento. O Sr. Leccapiedi era dono de um carisma irresistível, qualidade acrescida pelos constantes salamaleques com que este homem saudava aos que lhe iam ao encontro. Logo, logo, atraíra para si as simpatias não apenas das chefias, das gerências, do próprio Diretor-presidente do Banco, galgando, em tempo impensável e demasiado veloz, diferentes cargos até ser ungido a uma de suas diretorias, Ostentava, entre caras e bocas, hábitos de indisfarçável ‘nouveau riche’. Apesar ser pouco mais jovem do que meu pai também dele se tornara amigo por ingerência do velho Almoxarife. O Sr. Leccapiedi nas visitas dominicais trazia sob os braços antigos discos de goma-laca de 78 rotações por minuto, conhecidos como “bolachões”, com gravações de árias das óperas mais populares que muito deleitavam a família amiga. Certamente fora este inusitado contato com a música erudita que, mais tarde, fizera de mim incondicional apreciador de Óperas.

Essas visitas se estenderam aos domínios do ‘Chalé Grande’. O Sr. Leccapiedi hospedava-se na pousada do balneário. A chegada do Sr. Leccapiedi ao ‘Chalé Grande’ era anunciada pela estridente buzina de seu Hudson conversível. O automóvel exibia luzentes cromados e os pneus eram adornados por impecaveis ‘polainas’ de surpreendente alvura para as condições das ruas que circundavam aquele sítio à beira-mar. Após o almoço, o Sr. Leccapiedi lotava o imenso conversível com meu pai ao seu lado; no banco traseiro acomodávamo-nos eu e meus três primos. Seguíamos pela estrada de chão batido até Santo Antônio da Patrulha. Na pequena e acolhedora aldeia refestelávamo-nos no festival de guloseimas: sonhos, rapaduras de melado, e puxa-puxas. Meu pai invariavelmente obtinha na destilaria lindeira à estrada que ligava aquele município a Osório uma ou duas garrafas da afamada cachaça.

Mamãe não via com bons olhos a presença do Sr. Leccapiedi junto aos meninos. No balneário, onde quase todos os veranistas se conheciam, estendiam-se boatos de que o Sr. Leccapiedi costumava receber em sua bela casa no bairro Moinhos de Vento conhecidas locutoras e radioatrizes, promovendo festas que punham em polvorosa a vizinhança do sóbrio bairro em que residia. Diz a lenda que numa dessas madrugadas os incomodados moradores das cercanias acionaram a Rádio Patrulha. Estacionadas as duas viaturas policiais, estas acolheram o Sr. Leccapiedi, as convidadas, o Diretor-Presidente e demais colegas que compunham o alto staf do Banco, conduzindo-os para a Delegacia de Costumes, onde os “focas” e os papparazzi de plantão somente concordaram em rasgar as anotações e velar seus filmes fotográficos em troca da concessão de vultosos empréstimos bancários, com pagamento a perder de vista e isentos de quaisquer encargos financeiros. Com o passar dos anos, as visitas do Sr. Leccapiedi foram rareando.

A era de ouro do Rádio, cujas atrações consistiam em programas musicais e humorísticos nos auditórios das emissoras e no Cinema Castelo, e que tivera como ponto alto os noticiários, as novelas e os gingles de extremada ingenuidade anunciando o produto dos patrocinadores, mesmo com a chegada do primeiro Canal de TV, a Piratini, jamais perdeu sua magia e encantamento. As festas do Sr. Leccapiedi deslocaram seu foco para as artistas e modelos da televisão. As noitadas estabeleceram-se no luxuoso clube noturno As Mil e Uma Noites. O prédio côncavo, com monumental fachada de vidro e uma marquise curta apoiada em altas colunas cilíndricas, estava localizado na Avenida Guaíba, no bairro Assunção, às margens do Lago-Rio.

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