Partilhas de mim – Sergio Agra

Sergio Agra

PARTILHAS DE MIM

Descendo hoje a Avenida Ubirajara rumo ao Calçadão da Beira Mar, reparei de repente nas costas da mulher que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de uma mulher qualquer, a bata de crochê desbotada sobre o maiô de duas peças. Levava uma velha cadeira de praia debaixo do braço esquerdo, e uma pochetea tiracolo.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por essa mulher. Senti nela a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano da vendedora da loja de sapatos, ou da caixa dos supermercados que aproveita o dia feriado para desfrutar das águas do oceano, pelo lar humilde e alegre dela, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas abrigadas sob a bata de crochê.

Volvi os olhos para as costas da mulher, janela por onde vi estes pensamentos. A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo,talvez porque no sonho não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

Ora as costas desta mulher dormem. Toda ela, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe.

Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos, por tudo. É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres-diabos homens, o pobre-diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui? Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e as fronteiras dos países, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos, ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite sobre os amigos maus e egoístas como sobre os bons e generosos, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Desvio os olhos das costas da mulher, e passando-as a todas mais, quantas vão andando nesta rua, a todas abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo que ela; todas estes jovens, velhos, homens e mulheres que falam pelo celular, que riem para o vazio, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, os operários que deixam a construção, estas mulheres que seguem para a praia — tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com toda as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.

Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita profética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. Minha biblioteca torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores. Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele empreiteiro. Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e os outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades que guardam o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida.

Entrei no prédio onde moro, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Perguntei ao porteiro de meu prédio sem que me pesasse a necessidade de perguntar, — “E a vizinha do 707?”. —”Morreu ontem. COVID!”, respondeu sem tom a voz que estava por trás da mesa dos interfones. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como este porteiro eternamente ausente. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada. Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas caminhadas infrequentes — se deixo de vê-las entristeço.E não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
Deus é o existirmos e isso não é tudo.

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