Perfumes do Horizonte – José Alberto Silva

José Alberto Santos da Silva

Fantasiei com uma mulher por anos vendo-a envelhecer nas sombras de minhas memórias juvenis. Nossa relação ilegal perdurou tipo “teúda e manteúda”, porque me mantive mal casado nesses anos.

Nossos encontros esporádicos, um tanto hostis, briguentos, ressentidos, da parte dela por seu amargor da solidão, da minha, sofrido num jugo marital. Porém, cada encontro trazia-me o perfume da ocasião. Num restaurante, por exemplo, meu olfato pegava dos temperos do alecrim até alhos e cebolas fritos.

No calor dessa fantasia eu me consolava nesse refúgio de normalidade. Até o dia em que ela avisou que não falaria comigo e pediu irritada que eu fizesse o mesmo caso a visse por acaso.

Foi o que fizemos. Há mais de ano eu almoçava sozinho num restaurante e ela passou de óculos escuros. Culpo-me não tê-la pego pelo braço. Não quis ouvir sua fala tremida como quem à custo contém o choro e a raiva. Era um bairro distante do centro.

A saudade crescente fazia-nos parecer dois corpos que se atraem e se rejeitam com violência ruidosa como as duas partes de um prato de fanfarra. Pensei em prato de comida, disse ela ao censurar minhas preocupações com os famintos do pais. Ela se colocava isenta da plebe.

Numa conversa corriqueira repetia suas próprias qualidades e virtudes. Eleitora como outros negros de seu timbre, não da Direita ideológica do progresso para todos, mas de um psicopata, uma ficção alegórica, com aprazimento de matar coisas, bichos e pessoas.

Preferi provoca-la: “tu cozinhas? magra desse jeito tu não cozinhas, não é mesmo?” “Vou te mostrar” – respondeu sem me olhar – “como se faz uma perfumosa sopa de pedra, seu Pedro Malazarte!” Sem entender, eu desejava sentir a combinação dos perfumes de um café passado na hora, com a graça de um pão torrado em casa.

Há um ano atrás eu fantasiava diálogos de horas com ela. Lembro que ela sugeriu um sorvete animado pelo destempero de um agosto que entrara acalorado. Na Casa de Cultura Mário Quintana nós tomamos sorvete na mesma colher beijada.

Eu insistia em saias ou vestidos e ela usava “slacs”. Depois compramos um livro mais pelo vício no perfume de um livro novo. Fácil era prometer-lhe amor eterno com setenta anos de idade, uma vez que do horizonte só me vinham perfumes mortais.

Com a mão no pescoço ela sacudiu a cabeça de lado a outro dizendo necessitar de uma massagem tântrica. Eu não sabia como seria o apaziguar da carne via espiritualidade.

Tesão assim não senti nem quando bebê pelo perfume dos peitos da minha mãe. Combinamos encontro em data próxima a seu aniversário. Eu a queria de joelhos frente a mim fedendo a testosterona para me explicar alternativas amorosas à penetração que fazíamos na bruma dos incompreensíveis tempos atuais, enquanto límpidos, pra nós, eram os tempos do passado.

A realização amorosa quase se deu num passeio a Tramandaí. Nunca fui prioridade na vida de alguém. Ela entrou no meu carro bem aromatizado, reclamando cheiro de gasolina. Eu preferia saias ou vestidos para eu sentir seus odores suadinhos ou para bolinar suas “partes”.

Contrariado apalpei-lhe a cona. Retorcida afastou minha mão para proteger-lhe o xibiu. Sonhava viajar ouvindo sambas com talentos de verdade, para desfrutar dela. Na Free Way eu a desejava distante ela flertava com o horizonte. Eu queria esquecer de quando a via enlouquecida, escabelada, tão emagrecida que lhe salientavam os beiços como de uma mula, aos gritos empunhando faca para atacar filhos e netos ensanguentados.

Quando ela erguia a faca contra mim, eu acordava suado e aos gritos de um pesadelo.

Isto se repetia com frequência como prenúncio ou realização da demência. Zangada ela desistiu do passeio no litoral.

Eu a via em situações alegres, em trajes típicos de festas étnicas ou religiosas de Porto Alegre, trajes de festa ou de carnaval. Eu rejuvenescia ao vesti-la em fantasias, dos enfeites de cabelo a flores nos pés para dançar descalça; vê-la brincar feito criança ao andar de balanço numa praça ou me trazer aromas de um bebê; ao vê-la falar como menina de cinco anos ou correr nua numa praia deserta exalando nela própria o cheiro do mar ou da chuva na terra seca. Sonhos do inocente véio corno reformado que a entregava em oblação aos deuses da amorosidade, furtando-se de tocá-la por respeito mesmo com seus requebros suspirando nossas esperanças.

Ela repetia exigência de ter mais do que a penetração do tempo em nossas idades. Em vigília eu a mentalizava como a esposa ideal, ao dormir tinha sonhos vívidos transformados em pesadelos. Num deles estávamos num funeral com profusão de flores secas em que o homenageado era eu que acordei, em susto, ao sentir a diferença entre perfume e fedor.

Desembestei de encontrá-la. Pôr à prova sua decisão de virar a cara ao me ver. Sabia dela de forma incidental em ocasiões improváveis por não me interessarem, tipo lançamento de livro de culinária, futebol no Estádio do meu rival, enfim. Vontade de voltear no fim de linha de um bairro onde certa vez a vi passar de óculos escuros.

Meio a isto, seu espírito intragável e pretensão no nome de família como se fosse de colonizadores não de escravizados, atribuindo, a algo havido em nós a culpa por nossas dores. E o dito orgulho racial que não abre mão de tentar o branqueamento.

Filhos e netos brancos, tipo remissão de Câm. Eu fingia humilhação com um nome não Africano imposto pelo pertencimento colonial, e a deixava jactar-se na alienação.

E dê-lhe pesadelos por martelar sua procura em todo lugar. Ela me apareceu até como mulher bicho dizendo: “sou uma cobra que as vezes se fantasia de mulher, ouviu? Estás com nojo de mim, é? Nojo é rastejar e comer teu catarro.” Eu a enxergava em várias mulheres sem considerar as reformas que o tempo fizera na nossa desconstrução.

Quem sabe a encontre num baile para gente velha? De tarde. Baileco divertido. Circulei pelo salão.. Exultei por encontra-la tímida num canto!

Amigas velhas com maquiagens que as pioravam. Observei-a longamente. Cego e surdo para o resto. Paixão sem a excitação juvenil. Nos meus olhos vi um filme sobre arrependimentos. Parecia minha última fuga. Meu coração quase explode quando ela ergueu-se e veio em minha direção, após uma das amigas lhe dizer: “lá vem teu marido da memória de meia hora”.

Ela me encarou. Eu ofegava como um moribundo. Seu sorriso iluminou nós dois deixando o resto do universo envolto em uma viva névoa ágda ou ágata, que não me permitia ver além dela nem o que havia nela. Eu era misto de medo e encanto por seu mistério.

Ela chamou minha atenção ao esbravejar: “Malazarte doente! Minha sopa de pedra!” –E arrematou: “Sou apenas uma mulher, não duas; uma é a má que enlouquece contigo, a outra é tua Rainha Doce, amante fantasiosa. Não temos mais vida útil para fazermos tudo que sonhei”.

Então olhei de novo aquela densa névoa leitosa que lembrava a pedra dos jogos de gude de meninos a atrair minha atenção que era senão uma dimensão mágica que me levou a observar que de cada ponto do horizonte emanam perfumes diferentes.

Estes tinham origem no abstrato do imponderável para minha incompreensão, ora como perfumes da fé, ora da esperança, da caridade, da solidariedade, da visão, da audição, ora eram os perfumes do ponto final da vida de recomeços.

Enjoado de ver repetições do dia a dia de anos à fio, dei-lhe as costas deixando-a no invólucro de uma caixa de aromas. Afinal, preferir mergulhar impávido naquela incógnita dançante para fazer parte do restante universal.

José Alberto Silva

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