Colunistas

Prá quem fica, tchau!

Para Beta Timm, Elmano “Mano” Lauffer,
Paulo José Menezes da Silva e Danilo “Macaco” Miralles,
in memoriam.

Não me encontro em Paris, no quarto de um hotel com vista para uma grande praça. Hoje, terça-feira, não é feriado universal, mas haverá, à meia-noite a queima de fogos na prefeitura municipal. Não irei, sou personna non grata pelo burgomestre e seu staff.

Da janela do meu quarto, no entanto, avisto a inculta e para sempre desconhecida cidade que ainda dorme. São cinco da madrugada, não clareou ainda. Perdi o sono às três; acordei com o pensamento distante dos detalhes e das coisas que me cercam no cotidiano de todas as manhãs. Nem o desejo de reivindicar o “visto” de volta me trouxe à realidade. Olhos e mentes reavivaram imagens empoeiradas pelo tempo. Rostos anônimos desfilavam, como num filme ensombrado, na tentativa de me recordarem pedaços que, um dia, eu deixei: a palavra dita, o sorriso ofertado, a mão estendida e o ombro amigo que acolheu e preencheu carências.

Recordo, então, o “Poetinha” que jurava: – “… ao voltar, quero me regalar com papos de anjo, daqueles que só a mãe da gente sabe fazer, daqueles que se o sujeito for mesmo honrado, só deve comê-los metido num banho morno, em trevas totais, pensando no máximo da mulher amada”.

Meu desterro é fato consumado. A anistia está longe de su´alba. Não há papos de anjo, banhos mornos em trevas totais. Não há quem me ouça e me fale do Cirque du Soleil, do show do Johnny Rivers, do Ney Matogrosso, dos cento e cinquenta anos do Theatro, do Museu do Iberê Camargo, de Porto Alegre EmCena, ou se o país, algum dia, será  apenas de políticos honestos. Sou advogado (do diabo) em causa própria. De meu, só tenho a imensa e dolente saudade daquele pedaço de chão. Reminiscências da pátria pela qual combati, apanhei, me sangrei e me violentei, na ilusão de que isso era tudo o que ela de mim exigia. Lembranças dos trigais dourados da lhanura dorsal que minhas mãos percorriam com sofreguidão dos amantes; das escaladas às suas montanhas de sutis contornos, relevos insinuantes, até atingir os rosáceos e culminantes picos. Mirava-lhe a terra em toda a sua extensão. Fremia à visão de cada detalhe e dos sulcos nela deixados pelas mãos em garra. Aspirava-lhe o inebriante perfume, que somente aquelas paragens sabiam ofertar. Depois, descia pela encosta, até a depressão, aonde a selva densa e envolvente me corrompia, me sorvia e me afogava – ah, louca morte! – no seu escuro e profundo lago, saciando todas as minhas sedes.

Essa pátria, no entanto, impunha leis que me fendiam. Castrava-me – a cada subversão da sua ordem natural – o afeto e o desejo. Roubava-me o sono, violava meus sonhos, reprimia minha inspiração, incinerava meus poemas e panfletos, torturava-me a alma. E o seu fantástico exército repressor dispersava minhas nuvens e estrelas ouvintes, zombava dos meus discursos e eu, então inflamado, minguava, perdia a efervescência e o vigor.

Nesta distância, o sentimento de perda é intermitente. Extraviei-me dos trigais dourados, das planícies e montanhas que me conduziam à selva densa e arrebatadora que só a minha pátria tem. Da janela, vejo apenas os vigilantes – anjos de guarda noturnos – cruzarem pelas calçadas marchetadas pela maresia noturna. Escuto um pássaro madrugador, não é um sabiá. Avisto um menino louro; assim como surgiu, desapareceu, de repente, a caminho do mar.
Hoje, essas imagens não esboçam qualquer sinal, um olhar, nem mesmo palavras que, ao menos, me dissessem: “Jamais trocaria nossa amizade por divergências políticas”. “Apressa-te que o bonde Gasômetro já vem…”. “Lembras-te das serenatas que fazíamos no acampamento?”. “Recordas-te da noite em que bebemos vinho, falando sobre as mulheres por quem nos apaixonamos? Foram mais de trinta!”.  “Sou aquela que retribuiu o teu sorriso, lembras?”. “Eu te estendi a mão na manhã primeira do ano”. “Gostaste do show do Lulu Santos?”. “Eu dançaria contigo a noite toda outra vez”. “Agora, podemos amanhecer sob um dossel de estrelas…”.

Lembro, meus eternos amigos! Luiz Americano (que trocou minha amizade pela divergência política. Fazer o quê?), Sérgio Luiz, Augusto e Gilmar (por onde andam esses dois?), Aires, José Mário, Cláudio(s), Luiz Carlos e Jéco. Tonho, Ana Maria, Maria da Graça, Tânia Mara e Sônia Regina. Zênia e Zenira, Sílvia Helena, Nimpha Luiza e – por que não? – Lenita e Lizete.

Como permanece o rosto de cada um?  Mudaram tanto ou sou eu que já não os percebo mais? Fiquei tão velho, a ponto de esquecer o sorriso de cada um? Minha voz perdeu-se no túnel sem fim? E meus olhos? Meus olhos…

Foi por vocês, meus Amigos, que me distanciei da realidade que ora me cerca. Vejo, à minha maneira, cada semblante e ergo um brinde àqueles momentos já distantes.
Não desejo ficar eternamente à janela imaginando pedaços que foram meus, palavras que um dia pronunciei, sonhos que acalentei, voarem, libertos, rumo àquela terra da qual me expatriei. Há de me ser permitido, no derradeiro alento, deitar-me e sentir o calor das relvas e das flores da minha pátria, mesmo que, na verdade, tudo não passe de um tresloucado delírio.

No horizonte, a estrela vermelha explode no amanhecer de um outro ano…

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