Santherminia – Parte III
Após a longa caminhada, o religioso alcançou o alpendre da casa paroquial. Bateu a aldraba, esperou por alguns momentos e ouviu uma voz cautelosa de mulher, bem perto da porta, Quem é? Frei marcelino, vim substituir frei zacarias. Ah, é o senhor? –tranquilizou-se a mulher. A porta entreabriu-se com ruído e por ela despontou uma bugre pequena e sorridente, sem os caninos, os cabelos da cor do anu, em salamaleques, Fasfavor, frei marcelino, tá todo mundo aflito pelo senhor. Não é o que parece, onde estão os viventes do lugar, dormem com as galinhas? Tão no auditório da escola normal. O sacerdote pôs a mala sobre um banco de madeira, Alguma apresentação teatral? É a despedida de dona brígida, a fessora tá deixando a escola, vai se aposentar. Frei marcelino examinou a sala em que se encontravam. Era estreita, bem ordenada e limpa. Os móveis recendiam óleo de peroba. Tirou os óculos embaçados, Grande mestra, uma virtude, sem dúvida…, recordava-se da primeira professora, na escola elementar.
A professora veridiana pimentel, devota do divino espírito santo, benemerente das festas religiosas, apiedou-se do franzino guri que espiava, já há alguns dias, por sobre os altos muros do colégio, os folguedos dos alunos durante o período de recreação. Catou da imensa bolsa de couro cru o caprichoso sanduíche forrado com queijo, mortadela e alface, cuidadosamente envolto por um guardanapo xadrez, e seguiu na direção de onde se encontrava empoleirado o moleque. Assustado, marcelino ameaçou debandar. Num chamamento, a professora fez com que ele estancasse. E, com delicadeza, estendeu ao menino o embrulho. Em princípio, ele se mostrou melindrado. A voz cálida da mestra foi, aos poucos, deixando-o mais à vontade. Ele mirou com alguma curiosidade a merenda ofertada. Mordiscou-a para apurar se nela haveria qualquer ardil. Dona veridiana foi condescendente com a atitude de marcelino. A vida certamente ensinara ao pequeno a desconfiar de tudo que se apresentasse sob o manto da generosidade e da compreensão. A professora indagou de marcelino sobre sua família, onde morava, se já sabia ler e se possuía amigos. Entre uma mordida e outra do inesperado maná ele contou que nascera em missiones, na fronteira da argentina com o paraguai. Não tinha notícias do pai há mais de oito meses. José arcádio d’arisbo estava fugido da guarda aduaneira. Da mãe pouco ou nada lembrava. Fora morta, vítima de uma bala perdida disparada durante uma tocaia armada pela milícia de são borja contra os chibeiros, contrabandistas de azeite de oliva e tabaco, liderados pelo velho josé arcádio. Desde então, largado por esse mundão sem porteiras, perambulou pelas ruas de são borja ou pelas barrancas do uruguai. Dona veridiana inteirou-se, assim, da total carência e do abandono do pequeno. Porém, descortinou em marcelino, a centelha de que nele persistia, ainda, uma índole pura, generosa, saudável. No dia seguinte, dona veridiana procurou seu confessor, Dom carmelo abriggio, e expôs ao velho religioso o seu achado. Dispôs-se a investir na educação do menino, vesti-lo e zelar por sua saúde. Dom carmelo, em contrapartida, acolheria o pequeno na água-furtada, aos fundos da igreja, e cuidaria de sua formação religiosa.
Assim foi que, a partir do encontro com aquela mulher a quem dedicaria todos os sentimentos que não pudera endereçar à mãe que pouco conhecera, marcelino se tornou o sacristão da paróquia de santa teresinha. Doze anos mais tarde, marcelino ingracio d’aarisbo cruzava como noviço o centenário portão do seminário seráfico são francisco, em taquari.
A voz da índia fê-lo voltar à realidade. Prestativa, ela apanhou a mala e se dispôs a mostrar os aposentos do novo vigário. Ele carecia de banho quente e de um sono reparador. Foi, então, que se ouviu o bater insistente da aldrava na porta, depois a voz de homem dizer, A senhora, dona concha, pede ao padre pra ir ao casarão dar os últimos óleos pro coronel. A índia defendeu, Frei marcelino mal chegou. Dona concha recomendou que a causa é justa. Resignado, o frade recolheu da mala a estola roxa, o acéter de água benta, o aspersório e um estojo com os óleos sacramentais. Na boleia da aranha, sob a chuva invernal, seguiu com o agregado para a fazenda do coronel.