Secos e molhados

Da série “A Praça Júlio de Castilhos e a Turma do Murinho.

Uma vez por semana circulava pela Praça o vendedor de peixes, sempre às quintas-feiras. O produto era acomodado dentro de um balaio de vime e transportado nos ombros do peixeiro, seguro com dificuldade, provocando andar vergado, o que não lhe retirava, entretanto, o fôlego. O anúncio se ouvia ao longe: “Olha, o peixeiro! Peixeiro, peixe!” Naquele dia, na maioria dos lares da Praça Júlio, no almoço, seriam servidas piavas graúdas, pescadas no não tão poluído e ainda generoso Guaíba.

Na década de 50, funcionou o armazém de secos e molhados do “Seu” César Dexheimer, no andar térreo do edifício Moinhos de Vento, bem na frente da Praça. Era um homem amável com os fregueses, caneta acima da orelha, pronta para “puxar” a despesa. Vislumbravam-se pelo armazém os sacos de aniagem de cinqüenta quilos de arroz, feijão, batata, cebola, milho para canjica e erva mate. Eles ficavam expostos no chão, abertos e com as bordas dobradas. Sobre o balcão dispunham-se vários tipos de queijos empilhados, uns sobre os outros; os potes de mel a um canto e os de balas sortidas, dentro de baleeiro de vidro, giratório, bojudo, de dois andares e com tampa de alumínio. No mesmo balcão predominavam, quase ao lado da balança, a rapadura, as castanhas do Pará, os cajus, as nozes e as amêndoas. Havia um pote cheio de tâmaras, que a garotada confundia com baratas. Pendurada numa corda, via-se a lingüiça defumada — da grossa e da fina — escorrendo deliciosamente a sua gordura. Não faltavam o salame, as mantas de charque, o toucinho, a costela, patas e as orelhas de porco salgadas, ingredientes indispensáveis à feijoada. Atrás do balcão, junto à parede, ficavam as prateleiras onde eram acomodados as bebidas e os enlatados, muitos deles importados: patês de fígado de ganso, anchovas no azeite, salmão em lata. Na entrada do armazém distinguiam-se dois barris de carvalho, lado a lado, cada qual repleto de azeitonas gregas verdes ou pretas. No ar, o aroma apetitoso do genuíno bacalhau português, misturado à fragrância dos defumados, emprestava um toque especial ao estabelecimento.

“Seu” César, desgostoso com a vida a ela pôs fim com um tiro no peito, numa fria noite de inverno,no alto do morro do IPA, deixando a viúva e o filho, Júlio César. Depois, no local do armazém, por longos anos, funcionou a “Farmácia Sulina”, do “Seu” Otto.

* * *

Outro armazém conhecido ficava na esquina da Rua Miguel Tostes, com a 24 de Outubro, o “Armazém Orlando”, cujo dono, na verdade, se chamava Fernando Schultz. Orlando era o nome do seu primo, que foi quem, na realidade, abrira o negócio. Depois, vendera ao Fernando, que conservou o nome. O armazém funcionou dos anos 50 até o início dos 70. O local era pequeno e sujo, improvisado numa acanhada garagem e freqüentado por bêbados inveterados que consumiam cachaça, em pé, junto ao balcão, pois sequer cadeiras o ambiente possuía. Além da bebida, somente pão, queijo, mortadela, cigarro e fumo em rama, eram vendidos. O auge do movimento dava-se nos finais de tarde, quando os operários das construções próximas e os funcionários da Caixa D’Água, recém-saídos do trabalho, lotavam o ambiente. O Fernando era homem da colônia, de onde partira para ganhar a vida. Gremista ardoroso, em semana de Gre-Nal promovia “bookmaker”, onde sempre dava um jeito de levar algum dinheiro dos incautos apostadores. O seu armazém também era ponto de “jogo-do-bicho”, sendo que os fregueses nunca deixavam de fazer uma “fezinha”.

Certa manhã que antecedia a um Gre-Nal, os freqüentadores, eufóricos pelo jogo, discutiam a melhor hora de chegar ao estádio, quando Pé-no-Chão, lavador conhecido, quase débil mental, afirmou categórico:

— Eu só vou no campo bem pertinho da hora do jogo!

— É!… Comentarista chega à hora que quiser! — concluiu Fernando, mostrando a dentadura solta.

* * *

Friedrich Bauer, o Alemão Nazista, ou o Alemão Aleluia, era freguês habitual do boteco. Nascido em Picada Hartz, morava num cortiço perto da Praça Júlio. Um metro e noventa de altura, cabelos raspados, à militar, era desocupado e sustentado pela mulher, enfermeira da Beneficência Portuguesa.

Por vezes, o Alemão Nazista desaparecia do armazém. Passados alguns meses, reaparecia. Desconfiavam que, intoxicado pelo álcool, se encontrava internado no Hospício São Pedro, em crises violentas de delirium tremens. Havia quem dissesse também que era filho de um “quinta coluna” que fora preso pela polícia da ditadura de Vargas. Alguns acreditavam e diziam entre sussurros que o Bauer ajudava no Brasil os alemães fugitivos da Segunda Guerra.

Verdade ou mentira, realidade ou ficção, nunca se soube com certeza absoluta; o mais provável seria o de que tudo não passasse de fantasia etílica dos freqüentadores do boteco. O certo mesmo é que o Bauer nunca escondeu sua simpatia ao nazismo; ao contrário, a alardeava e, até, alimentava o imaginário do bar. “Quero vê os milico me prender, por isso.” — provocava. Bêbado, afirmava manter contatos com Hitler:

— Agora tá morando em Tebicuary, no Paraguai, o coitadinhas. Dá pena, de vê! Se ampara num bengala e no Eva, que tem sido incansável; bem velhinhas, agora! Mas de um lucidez de gurri! O Bormann vai todo mês visita ele. Agora nóis vai fazer um bom trampa, com a pessoal do Itapecerica da Sera, lá pros lado do São Paulo; um dia desses vocês vão vê!

Anos depois, em 1985, num cemitério do Embu, na grande São Paulo, a poucos quilômetros de Itapecerica da Serra, foi encontrada a ossada de Josef Mengele, médico e cientista nazista, um dos homens mais procurados da equipe de Hitler.

Sempre que chegava no boteco, Alemão Aleluia parava na porta, braço direito estendido à frente, batendo com os pés no chão, bradava:

— Heil, Hitler, cães famintas, massa ignarra! — E completava — É preciso que chova bastante. Assim vocês não saem dos tocas, de onde nunca deviam ter saído, malta infame!

Mas ninguém o levava a sério; ao contrário, era motivo de chacota.

— Cala boca, alemão, p…! Tu eras a alegria da gurizada do Morro Reuter — gritava alguém, lá do fundo do bolicho, provocando o Aleluia, que esboçava apenas um sorriso com o canto da boca, deixando à mostra o incisivo direito de ouro e retrucava:

— Aleluia, Cristo Rei!

Ao deixar o armazém bêbado, o pessoal o fustigava para que ele, na despedida, batesse novamente os calcanhares. Com ar altivo, bem que tentava, porém tropeçava nas próprias pernas e desabava na tentativa de saudar o Führer.

Afirmava para quem quisesse lhe ouvir que era fiscal de bancos.

— De bancos? — indagavam.

— É! — ele mesmo respondia. — Banco de praça, animal!

Por vezes, sóbrio, quando encontrava algum conhecido dizia convicto:

— Não vou mais no armazém da Fernando. Lá só tem bagaços; é gente baixa!

Certa vez, imiscuído junto à roda do professor Edgar Wiltgen, no Bar da Júlio, teimava em contrariar o mestre dizendo que fumar em alemão era fumieren, enquanto Edgar indignado, sustentava que era rauchen. E o professor dizia para os demais do grupo:

— “Fumieren” se diz na colônia, de onde deve ter surgido este troglodita; “rauchen” é o alemão puro, que eu aprendi em Bonn; em Bonn, meu caro, entendeu?

O alemão, cirrótico, morreu no Hospital Belém, professando sempre a abominável fé.

* * *

Fernando costumava aceitar como “empenho” objetos dos fregueses: máquina fotográfica, relógios de pulso e de parede; facas de prata para churrasco, correntezinhas de ouro. A maioria do pessoal não resgatava os objetos. Certa vez, entupido de peças penhoradas, sem saber o destino a dar a elas, amolado, avisou ao primeiro que tentou lhe empurrar um empenho:

— Cansei! Não adianta mais vir com bagulho pra empenhar; esse negócio de agiotagem, só dá prejuízo!

Mas, com seu singelo, acanhado e imundo armazém, vendendo pão com salame, cachaça da braba e servindo de ponto ao “jogo-do-bicho”, Fernando conseguiu criar os quatro filhos e construir um pequeno patrimônio, que lhe garantiu aposentadoria tranqüila até o fim dos seus dias.

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