Colunistas

Um brinde à porta-estandarte do Morro da Cruz

(Lembrando o Bar Monte Alverne)

Depois de mais de trinta anos, Severino fechou definitivamente as portas do Monte Alverne. As noites de verão regadas a chope de colarinho curto, sanduíche-aberto e acaloradas discussões sobre o existencialismo de Sartre, as guerrilhas de Che, as teorias e os pensamentos de Marcuse, Schopenhauer, Freud e Jack Kerouak – heterogênea legião! – tiveram seu fim. O bebum da cabeça cor-de-rosa foi em busca de outro botequim. A Confraria da Purinha passou a reunir-se no balcão de outro boteco, abafadiço, modorrento, destituído de banquetas, mesas e cadeiras. Severino foi, enfim, gozar a aposentadoria.

Aleph olha para a fachada do velho prédio e pergunta-se como seria um bar morto? Que segredos, mistérios e lembranças ficaram ali sepultados? Com uma leve pressão do ombro, ele empurra a porta que se entreabre. Desacostumado à penumbra, tropeça num engradado. Grita um palavrão e passa a palma da mão pela canela dolorida.

As geladeiras riem do seu desastre, mostrando o gozo através de suas portas escancaradas. Um naco de fiambre putrefato, atado a um cordame envolto no gancho de ferro para carnes, efervesce ante o alegre bailarico das varejeiras. Na parede, atrás do comprido balcão descobre-se, esquecida numa moldura com gregas douradas, a foto do time de ouro do Sport Club Internacional: Figueroa, Cláudio Duarte, Carpeggiani, Waldomiro… Cadeiras e mesas jazem, empilhadas, na inútil espera que o piso seja algum dia lavado.

Atravessando o estreito corredor, que desemboca num pátio de tijolos carcomidos, alcança-se um galpão. Ali, sim, estava o mausoléu do lugar. As tralhas, que amontoadas alcançavam o forro, ocupavam quase todo o espaço do depósito. Um rato pôs-se em fuga ao ouvir os passos de Aleph. Com asco, ele arremessa contra o animal o que estava ao alcance das mãos: garrafas, enlatados e um enorme saco plástico contendo potes de iogurte azedo. As mãos cheiram-lhe mal. Aleph transpira, arfa, agita-se. Ouve os guinchos do rato, encurralado pelos cacarecos.

Súbito, defronta-se com um esqueleto humano que surge sob aquele cemitério de trastes. A múmia traz presas aos braços, longas e coloridas tiras de cetim. No alto da caveira, repousa uma boina ornada de pequenos quadriláteros de idêntico tecido e com as mesmas cores das fitas. A cartilagem do que fora uma das mãos segura um copo incrivelmente limpo. Aleph, em desvairada e cega corrida, foge daquele galpão assombrado. Tropeça, uma vez mais, no engradado de Coca-Cola e fere a outra canela. Desta feita, não diz palavrão. Prossegue até lhe faltarem as forças na insana fuga sem saber por que caminhos e da noite que havia chegado. Para, extenuado, numa rua nunca dantes vista. Tenta, em vão, reconhecer aquele lado da cidade.

No alto de uma construção, sobre o andaime inconfiável, ele avista a mulata. O olhar perdido da mulher denota uma tristeza profunda. Dos braços estendidos, tremulam longas e coloridas fitas de cetim.

A boina, com detalhes quadriláteros de tecido e cores semelhantes aos das fitas, displicentemente jogada, quase encobrindo um dos olhos, tenta dar à cabocla um ar blasé, que ela, em verdade, não tem. Traz, numa das mãos, um copo vazio. A cabrocha parecendo gravitar, aproxima-se de Aleph e diz, fui porta-bandeira do Morro da Cruz. Meu malandro, com ciúmes, tocou fogo no barraco, vendeu meu estandarte, fiquei sem brincar o carnaval. Vem, bebe comigo! Depois, vou em busca do que me foi tirado e, aí sim, hei de desfilar, mais bonita do que nunca, numa outra Passarela.

Aleph não esboça qualquer reação. Limita-se a mirar as estrelas que, naquele momento, pareciam sambar no Firmamento, ao som de milhares de cuícas e tamborins.

A manhã irá encontrar Aleph sentado no piso imundo do galpão do antigo bar, com um copo de cerveja quente, brindando com o esqueleto que lhe parecerá sorrir.

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