Um heterônimo chamado Alírio Cássio Di Zabanetta Noronha

Sergio Agra

Se algo há que muito me alegra e realiza é ser padrinho literário de amigos que, como eu, são atrevidos escrevinhadores. Padrinho no sentido de convencê-los a abrirem os arquivos de seus computadores e mostrar para o mundo o que os faz sentarem-se à frente de um teclado e monitor: — o voo que cada qual a seu modo e “rota” empreende no universo mágico da escrita. Jorge Alberto Carriconde Vignoli, o Doutor Vignoli, fora um deles.

Conheci o Vignoli no início deste terceiro milênio no escritório de advogados associados onde também labutei. Daquele pequeno decurso de tempo fora ele a amizade das mais sinceras e leais que se estenderia para fora dos autos processuais.

Certa feita ele me enviou a crônica tipo “houve uma vez um verão”, em que se reportava às férias do então adolescente Jorge Alberto em Capão da Canoa. Foi o que bastou para que eu lhe “indicasse” o caminho de Litoralmania.

E ele não parou mais…

Num contato telefônico Vignoli me indagou se eu faria a revisão e o prefácio dos originais de um amigo seu que desejava deixar “plantado” o seu livro. Estipulei o valor dos honorários e o trato foi feito.

Alírio Cássio di Zabanetta Noronha, o suposto autor, dedicava o livro in memoriam de Breno Allem Wiethölter, Everton Renato Fuão Juliano, José Luiz Cunha Rangel Pinto, Paulo Hammes Dable e a todos os amigos ainda vivos.

Eis como fiz a “leitura” dos textos:

O mais novo escritor dos altos da Independência — se é que assim podemos afetivamente chamar aquela febril confluência de praça, ruas e avenida —, Alírio Cássio Di Zabanetta Noronha, me fora apresentado em textos pelas mãos de nosso amigo comum, o advogado Jorge Vignoli. Através deste, Zabanetta Noronha solicitava-me que revisasse o original que acalentava um dia editar e — a glória! — publicá-lo.

Devo aqui registrar o meu confiteor. Como na ocasião não conhecia o autor pessoalmente, ao iniciar a leitura das páginas primeiras pensei: deve ser um patriarca na casa dos seus noventa anos que, antes de partir, pretende ver o seu tríduo terreno completado: filhos criados, árvore plantada e o livro de piegas memórias.

Zabanetta Noronha ainda está longe dos noventa — e até já poderia ser um nonagenário, pois a avoenga idade em nada desmerece um homem. Não sei se plantou a sua árvore, porém, este delicioso e enternecedor “A Praça Júlio de Castilhos e Turma do Murinho” compara-se a um horto onde florescem todas as emoções, nas quais leitor algum que tiver a grata felicidade de lê-lo poderá ficar imune. E pieguice é algo que ficou inteiramente alijado na narrativa.

Impossível, independente de idade, não se deixar envolver e, digo mais, vivenciar — graças à sinceridade e à linguagem sem floreios do autor — as histórias, os fatos, as trampolinagens, até, daquele irreverente e inconsequente grupo de jovens no transcorrer dos díspares anos de sessenta/setenta, em que mesmo o regime de exceção não logrou silenciar.

Tive assomo de risos na maior parte da leitura. Mas, o encaminhamento para o desfecho das narrativas e o destino que cada uma das suas personagens tem de seguir, deixou-me, como há de deixar a quem o ler, com um certo travor na alma, levando-nos, o que é razão essencial de toda obra literária, a refletir sobre nossa humana condição.

Ao receber o exemplar de “A Praça Júlio de Castilhos e a Turma do Murinho” qual não foi minha surpresa ao me deparar na derradeira página com a biografia do autor:

Alírio Cássio Di Zabanetta Noronha nasceu na Rua 24 de Outubro, número 63, Porto Alegre, em 1950. Estudou no Colégio Bom Conselho e no Colégio Rosário. Compunha a Turma do Murinho e, além do Bar da Júlio e do Dom Jayme, na juventude circulou buscando saciar seu apetite voraz e sua sede etílica pelos bares Bona-Xira, Tortuga, Toca do Mulita e Lawsons. Deixou a sua cidade natal (e a Rua 24 de Outubro) em 1973. Morou em Santos, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi professor de Literatura Brasileira, repórter e editor de jornais e revistas. Publicou livros infantis (O Macaquinho Chiquinho, O Gigante Elesbão, O Pinto Pia e a Pia Pinga). Foi colaborador de cadernos de cultura. Eremita, desde 1996 recolheu-se em Gravataí, RS, onde faleceu em fevereiro de 2008.

Lamentei o fato e manifestei ao Vignoli minha frustração por não ter conhecido o autor. Do seu jeito pândego, ao mesmo tempo encabulado, confessou ser ele próprio, Vignoli, o cronista e Alírio o seu álter ego. Ele assim agira porque, retraído que era, ficaria constrangido se o livro não tivesse boa aceitação. Furioso respondi que se assim fosse não o teria convidado a escrever no Litoralmania. Pensando em aplacar minha fúria arrematou: “E se tu soubesse disso não terias me cobrado os honorários!”. — Não deixei por menos, — “Teria te cobrado três vezes mais!”.

Na quinta-feira, neste 01 de abril, Jorge Alberto Carriconde Vignoli, parceiro de códigos e de escritas, meu leal amigo, pregou a todos uma peça totalmente sem graça.

Ele parou definitivamente de escrever…

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